Camboja, Battambang III - dois Phnoms: o Sampeau e o Banan


Para fechar Battambang faltava ainda conhecer o lado histórico e religioso da cidade.
Seria ainda sob a tutela de Mr Poe que eu visitaria os templos de Phnom Sampeau e Phnom Banan, subindo e descendo centenas de degraus.

A chegada a Phnom Sampeau foi feita de manhã, onde o calor e principalmente a humidade ainda não mostravam os afiados dentes.
Mr Poe propôs duas alternativas, que na prática e pelo soar das suas palavras era só uma. Ou se subia pelas escadas, chegava-se ao topo da colina mais rapidamente e também bastante mais cansados, ou, decisão tomada, íamos por uma suave rampa que nos tomava mais tempo mas com menos danos para as pernas e pulmões.

Atrás de nós, melhor atrás de mim, um séquito de quatro miúdos com idades abaixo dos dez anos iam abanando coloridos leques. A brisa provocada pelo abanar dava algum alívio à humidade que se acumulava nas minhas costas. A ideia era no fim ganhar algumas moedas. Fui avisado para não aceitar. Eles, naqueles dias deveriam estar na escola e não com turistas a tentar ganhar trocos. "A aposta é na educação, não no pedir dinheiro a quem nos visita".

Também na sua história recente, esta colina, Phnom Sampeau foi tocada pelo dedo negro e mortal de Pol Pot e dos seus Khmer Rouge.
A meio caminho do seu topo chegamos a um templo, um pagode. Um grande Buda dourado, sentado e protegido por um toldo verde de forma cónica impõe a sua presença.
Poe pára, enxuga o suor que lhe escorre da testa e limpa os seus óculos. Explica que o templo tinha sido profanado pelos Khmer Rouge.

Não tinham destruído o templo, mas tinham assassinado os monges e tinham tornado aquele pagode numa prisão e centro de interrogações. E como humilhação pela religião budista tinham-no usado igualmente como uma espécie de estábulo e curral onde guardavam gado caprino e bovino.
A história daquele templo era o reflexo da história de Phnom Penh e do restante país. A mesma loucura destruidora de um regime insano.




Vamos agora ao coração negro da colina, a killing cave, uma caverna onde camponeses, monges e letrados eram assassinados.
Umas longas escadas de corrimão de um verde azulado já gasto e arredondado pelo uso conduzem-me lá para baixo. Do lado direito está um outro Buda também dourado, na posição deitada.
Um velho medita e ao seu lado uma pequena jarra com paus de incenso a queimar, enche o espaço de um aroma adocicado. Uma jovem rapariga anda de um lado para outro a apanhar folhas que vão caindo de cima.

Apontando com o dedo para o meu lado esquerdo e para cima, Poe mostra-me bem lá no alto, uma clarabóia no tecto da caverna, onde um feixe de luz mostra na rocha uma abertura para o exterior. Seria dali que cambojanos moribundos ou não, muitos vindos do pagode onde tínhamos estado recentemente, do S21 ou até dos Killing Fields seriam atirados cá para baixo por oficiais dos Khmer Rouge.
O pequeno memorial colocado ao lado do Buda contendo as ossadas de algumas dessas vítimas ajuda a ilustrar e a relembrar estes terríveis actos.


Saímos, voltámos a subir e atingimos o topo da colina.
Um conjunto de templos, vários monges, estátuas hindus a relembrar as raízes do budismo, uma bela vista para uma bonita paisagem e vários macacos. Dos irrequietos.
 
A partir daqui seria sempre a descer até à carrinha que me levaria para Phnom Banan após talvez vinte minutos de condução em estrada razoável.

À minha frente tinha o primeiro de 358 degraus para subir. Nada de especial pode-se pensar. Mas não com a humidade que estava e não com a inclinação dos degraus. 
A ladear as escadarias, duas nagas - na mitologia hindu-budista elas simbolizam protecção e são representadas com várias cabeças de serpentes erguidas em número ímpar, usualmente sete - mostravam o caminho.
Pisco o olho à naga do meu lado direito e enfrento a escadaria.
Duas miúdas, crianças, já estavam a abanar os leques nas minhas costas. Olho para as suas pernas e depois para a altura dos degraus. Quase ela por ela. A subida é claramente um esforço violento para ambas.
O conselho dado em Phnom Sampeau não estava esquecido e com um sorriso e um insistente abanar da mão desencorajei-as de continuar. Descontraidamente e sem perderem tempo partem para outros turistas.

Phnom Banan é um templo budista Khmer com um conjunto de cinco torres razoavelmente bem preservadas do séc XI, inspiradas na arquitectura de Angkor Wat.
A base da colina, principalmente aos fins de semana é um local favorito das famílias locais para fazerem pic nics. De momento tenho a calma deste sítio toda para mim.
Vale a pena fazer uma (necessária) pausa no topo. A vista é soberba com o extenso verde dos arrozais a dominar a paisagem, manchada por umas quantas palmeiras. E entre as ruínas do templo é possível encontrar e admirar alguns baixos relevos que decoram as suas paredes.
Há quem ore num pequeno santuário. Ocorre-me que a subida por si só já deveria valer por uma oração. Espero que Buda leve isso em consideração.

Pela segunda vez naquele dia preparo-me para descer um longo conjunto de escadas.


Um almoço num pequeno restaurante de uma família local próximo de Phnom Banan esperava-me.
Um conjunto de três telheiros de ripas de madeira elevados sobre um campo aquático de flor de lótus transmitiam tranquilidade e calma. Os acessos a eles eram os mesmos, pequenas escadas de três ou quatro pequenos troncos de madeira, todos com ar de ainda não estarem muito usados. Fico no primeiro. O segundo estava vazio e no terceiro estava um pequeno grupo de asiáticos.




Várias camas de abanar, umas de tecido preto outras de um bege acinzentado estavam esticadas pelas colunas dos telheiros.
No telheiro contíguo ao meu, o tal que estava vazio, uma rapariga de expressivos olhos ligeiramente amendoados e bochechas redondas, talvez com cinco anos tomava conta de um bebé de poucos meses. No chão viam-se bolachas e uma boneca de brincar suja de restos de migalhas.

A sua atenção estava dividida entre a sua boneca que ela agora segurava na mão, o "boneco" verdadeiro que cuidadosamente tinha deitado numa das camas pretas e a curiosidade que o estrangeiro lhe despertava.
De vez em quando olhava para mim, fazia brincadeiras e saltava de um lado para o outro para atrair e ter a minha atenção. Dei-lha toda, sem me fazer difícil.
Ela estava situada numa espécie de limbo da vida a oscilar entre duas necessidades: ter que ser adulta e a de satisfazer a sua natureza infantil. Durante alguns minutos esteve do lado bonito do limbo.




Duas finas esteiras de pano serviam simultaneamente de toalha e de almofada.
Uma taça de arroz e noodles de galinha a fumegar chegaram. Virei-me para o verde do campo aquático e entre um misto de técnica oriental de pauzinhos e técnica ocidental de um garfo dei conta do recado.
A minha vez tinha chegado. Com ar de guloso estiquei-me numa das camas de pano preto. Braços ao longo do corpo, pés cruzados, um balanço ligeiro da cama e olhando para o tecto, o mundo foi-se estreitando cada vez mais nos meus olhos.

"Lets go??". Abri os olhos e o rosto redondo e sorridente de Mr Poe estava à minha frente. O meu pouco convincente "Sure!" ainda demorou uns segundos a ser pronunciado.


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