Egipto, White Desert - pães de açúcar, fantasmas e fenecos

Temos recuar sessenta milhões de anos. Os dinossáurios já estavam extintos, e estávamos a transitar do período do Cretácico Superior para o Terciário, actualmente designado por Paleógeno.
Nesta altura, o planeta, felizmente para ele, ainda nem sequer sonhava com o homem.
Um pequeno mar pouco profundo situava-se a cerca de quarenta e cinco quilómetros do que é agora o oásis de Farafra.

Nos trinta milhões de anos seguintes, este mar iria depositar no seu leito, calcário e carbonato de cálcio, um sal conhecido por giz, provindo de conchas, carapaças de seres marinhos, crustáceos e restos de recifes de coral, que nele habitavam.
Uma intensa actividade vulcânica e movimentos tectónicos originados há trinta milhões, em pleno Paleógeno, e que daria origem às grandes cadeias montanhosas do planeta, os Alpes, os Himalaias e os Andes, faria recuar este mar de águas rasas e expor todo o calcário e cálcio acumulado por ele.

Com o passar do tempo, e sob acção continuado dos elementos, estes materiais sofreram uma erosão diferenciada. Materiais com características diferentes, têm erosão também a velocidades diferentes.
A consequência é um deserto incrível, belo e surreal chamado Deserto Branco, conhecido por White Desert, ou como os egípcios o designam, Sahara el Beyda.

Desde 2002 que é considerada uma zona protegida, cobrindo uma área de mais de 3000 quilómetros quadrados.



Os pães de açúcar do Vale de Aqabat

A saída do oásis de Farafra foi tardia e rápida, havia o risco de se perder o pôr do sol num dos desertos mais invulgares à face da terra: o White Desert.
Para além do condutor e do cozinheiro, nos 4x4 iam dois passageiros sentados nos exíguos e desconfortáveis lugares de trás e nos tejadilhos cada um deles levava, tendas, lenha, mantimentos, mantas e para-ventos.
Comigo, estava Mensah ao volante e Amsun que iria cozinhar.

Mensah pára o jipe numa plataforma rochosa superior. À minha frente e sob os meus pés estende-se Aqabat Valley. Algo parece estar mal nele. Em vez de um imperturbável lençol de areia com dunas de areia a texturá-lo, existem formações rochosas de calcário no seu lugar. Algumas são colinas de encostas brancas, muitas são pequenos cones meio alisados e moldados pelos ventos dominantes. Dão um aspecto estranho, quase alienígena ao deserto.
A areia está incrustada nelas o que lhes retira a pureza do branco, mas não o suficiente para dar a sensação que elas pertencem ao deserto.

Vejo a sombra de Amsun a aproximar-se por detrás de mim. O cozinheiro sorri desajeitadamente, mostrando um bigode também desajeitadamente aparado. Tudo nele era escuro: cabelo, olhos, a tez e o bigode. Simpático, mas reservado.
Com as duas mãos paralelas e quase juntas uma à outra, diz num inglês soluçado e hesitante:
- Vês aquelas alturas pequenas? Chamam-se "sugar loaves"
Tinha lido sobre elas previamente. Sugar loaves, ou pães de açúcar, são as formas cónicas de cor branca onde era depositado, o açúcar que resultava depois de as canas de açúcar terem sido espremidas e o açúcar fervido. Depois de seco era retirado destas formas e ficava com a forma delas, os tais pães de açúcar.
É por causa destas mesmas formas que o famoso morro de Rio de Janeiro se chama Pão de Açúcar.

Mensah retoma a condução, e de novo rapidamente, descendo pela plataforma. Ele acelera ao longo da vale durante alguns minutos. Solta pequenos gritos e diverte-se com o desconforto que os saltos do jipe ao alternar entre o chão de areia macia e o piso sólido do calcário raso provocam. Não fico atrás e rio-me com ele. E no entanto tal não me dá gozo. Preferia pertencer-lhe. Ir com o vento, fluir com as curvas que o deserto me oferece do que ir contra elas.
Pára junto a uma enorme agulha de calcário brilhante e quase de um branco imaculado.
Recebo outra informação tímida: "Inselberg", afirma Amsun com o dedo esticado quase na vertical.

Os inselbergs são remanescentes rochosos que resultam de um processo de erosão diferenciada. Destacam-se nas paisagens onde estão inseridos por estas serem usualmente planas ou terem uma geografia muito suave. Exactamente o que se passava ao longo do vale de Aqabat.
Esta agulha era imponente. À sua volta havia um mar de detritos brancos.












No White Desert


O vale de Aqabat ficou para trás. Pela terceira vez neste dia, os 4x4 cruzam a paisagem mista de branco e amarelo rapidamente.
Entram a toda a brida numa segunda secção do deserto através de pistas balizadas por pequenas pedras de calcário como uma pista de um aeroporto iluminada à noite.
O Toyota de Mensah pára um pouco mais à frente de outros jipes e exclamou: "Here, here. Stop here".
Ao seu lado estavam parados outros 4x4 e algumas pessoas cá foram andavam à volta das formações calcárias.
Olho para o sítio onde tenho os pés e dou uns passos. É estranho pisar um deserto onde em vez de sentir o pé a afundar na areia, tenho uma base sólida por onde caminho firmemente sem que sinta o esforço de o tirar do chão.
Estou em pleno White Desert.


Os olhos piscam e têm dificuldade em se fixar. Um pouco por todo o lado, mais ou menos altas, mais ou menos irregulares, há esculturas brancas moldadas pelos elementos onde esperava encontrar dunas de areias. O sol ainda a umas horas de se pôr, fá-las refulgir com alguma intensidade.

Olho para duas delas, as mais conhecidas da secção do deserto onde estamos autorizados a entrar.
Parecem uma galinha e uma árvore, ou ainda uma galinha e um cogumelo. O condutor diz-me que é uma galinha e uma bomba atómica.
A base de calcário onde elas assentam está surpreendente polida.

O sol começa a baixar no horizonte nesta paisagem irreal e com ele alongam-se as sombras. O branco antes intenso, reflecte agora as cores do sol, um dourado que tinge e atinge tudo à minha volta, acentuando a irrealidade do momento.
Minutos depois de se ter posto, surgem as cores mais ricas, densas e mais misteriosas.
Ao lado da árvore esculpida no calcário, há uma família vai alternando as fotografias entre si e ao pôr do sol.
Pelo recorte das silhuetas que sobressaem no céu escurecido, e da maneira como parecem encaixar uma na outra, parece-me que o cogumelo e a sua companheira galinácea foram em tempos uma única formação.

















Entre fenecos e estrelas


O motor do jipe ronca de novo e penetramos mais profundamente no deserto. No White Desert há locais especialmente preparados para os acampamentos. Só neles se pode pernoitar no deserto.
Mensah e Amsun montam as tendas, o paravento, acendem a fogueira e cozinham. Ouve-se os guias a conversarem entre si. Chocalham panelas, tachos e as colheres de alumínio, libertam-se aromas. Os movimentos das suas mãos iluminadas pela fogueira são quase hipnóticos.
Distribuem pratos de plástico a cada um de nós.
Come-se com introspecção com os pensamentos presos nas brasas.

Os dois egípcios dizem que no deserto, em noites de lua cheia, libertam-se fantasmas cor de prata do calcário e que velam por quem lá passa a noite, Nesta noite está lua nova. As formações estão escuras como a noite, praticamente fundem-se com elas. Não há sinais de fantasmas.
Mas enganei-me...

"Look, look!", exclama Mensah quase sem se fazer ouvir, chamando a nossa atenção e apontando o dedo para a noite escura. Dois pares de olhos brilham na noite espelhando a fogueira, apenas olhos.
Ele tira dois pedaços de carne do seu prato e estende-os para a escuridão. Cativados pela oferenda, os vultos tomam forma. Um avança na nossa direcção ficando iluminado, o outro, mais receoso fica mais recuado, mal iluminado, protegido na penumbra.
"Desert foxes!", "They can smell our food! e depois atirou os bocados que tinha na mão.


As raposas do deserto ou fenecos, são raposas pequenas - as mais pequenas do mundo - de hábitos nocturnos, pelagem espessa cor de areia e com uma cauda felpuda.
O que as mais caracteriza são as suas enormes orelhas, a fazer lembrar as dos morcegos. São excelentes a dois níveis: dissipar calor e aumentar a acuidade auditiva o que lhes dá um jeito enorme para caçar insectos, pequenos roedores e aves na escuridão do deserto.
O pelo espesso do corpo e das patas, protege-as simultaneamente do calor do dia, do frio da noite e as patas das areias escaldantes.


Estendi o meu saco-cama próximo de Mensah e Amsun. Eles estavam deitados cá fora enrolados nas mantas. Virei-me para cima para contemplar as estrelas. A Via Láctea estava esmagadora.
Fechei os olhos. Senti a presença calcário branco à minha volta, o vento pé ante pé a segredar ao meu ouvido, as areias amarelas polvilhadas de branco amassadas pelo meu peso por baixo da esteira, e o crepitar de uma fagulha isolada a partir de uma brasa qualquer da fogueira que ainda ardia sozinha perturbando o sossego da escuridão.

Desejei boa noite a todos eles: à fogueira, ao gentil vento, aos fenecos que mais tarde iriam rondar o acampamento à procura de uma refeição à borla, aos fantasmas que garantidamente andavam à minha volta, e às estrelas, acrescentando o pedido que olhassem por mim nas horas seguintes, depois afundei-me numa noite de fantasia.




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