Jordânia, Wadi Rum - e tu Wadi Rum, que poema serás?

“Tudo quanto penso, tudo quanto sou, é um deserto imenso, onde nem eu estou” 
Fernando Pessoa

Os desertos têm personalidades diferentes, têm vontades próprias. 
Mesmo que semelhantes entre si, na aridez, na inclemência da variação das suas temperaturas, eles diferem na essência, na forma como mexem connosco, como falam comigo. O deserto de Gobi da Mongólia é diferente do deserto do Namibe da Namíbia, o White Desert egípcio é diferente do Deserto Central iraniano. E o Wadi Rum jordano é diferente de todos eles.

Muitos já foram verdejantes, antigos lagos, oceanos e montanhas, que a acção dos elementos ao longo de milhões anos secaram, moldaram e alisaram, depositando as suas memórias, as memórias do planeta, debaixo dos nossos pés, e tantas vezes à frente dos nossos desatentos olhos.
Gosto deles da mesma forma que outras pessoas gostam do mar. Em vez de água, são mares de areia. São calmos, são introspectivos. São poderosos e inclementes. Parecem ser infinitos e eternos. São o meu elemento absorvente da matemática. O que passo para eles, fica com eles. Quando estou neles, estou só com eles. 
Os problemas desvanecem-se, aliviam-se as ansiedades, suavizam-se tristezas e as dores ficam mitigadas.
Sobra a paisagem, o sol forte e a luz intensa, os dias quentes e as noites frias, os céus limpos e os céus estrelados.

Vejo-os como poemas.
Dependendo de quem os sente, de quem os vivencia, podem ser uma quadra simples ou um épico, ter métricas longas e lentas ou, curtas e aceleradas. Poderão ser escritos com rimas delicadas e suaves, mas também furiosas e implacáveis.
E tu Wadi Rum, que poema serás?


A aldeia Rum é suja e desorganizada. É a única aldeia que existe dentro da área protegida do Wadi Rum, o Vale da Lua em arábico. Habitam pouco mais que cinco centenas de beduínos, a esmagadora maioria pertencente à etnia Zalabia e vivendo essencialmente do turismo que o deserto atrai.
É a porta de entrada para o deserto.

Há velhos motores descascados e encostados a paredes, chapas de metal no chão, há lixo e areia a rodopiar no ar, garrafas plásticas que batem contra os muros quando o vento lhes bate, antenas parabólicas tombadas, muros inacabados, casas remendadas e carros a cair de podre.
Os camelos andam, frequentemente sozinhos, pelas ruas no seu andar compassado e oiço o relinchar dos cavalos estão no interior de quintais mal arranjados. Os pouco estrangeiros que se vêm, entram e saem das agências, as únicas que têm casas razoavelmente decentes, com os guias ao seu lado.
Connosco, a mesma coisa. O escritório da agência estava desorganizado. Papeis espalhados por uma mesa, catálogos de viagens de 2010, fotografias de cavalos amarelecidas, cinza de uma beata caída fora do cinzeiro.

Cá fora, o beduíno Sabbath, o nosso guia, motorista e cozinheiro vai dando informações e conselhos:
“Mochilas com coisas que precisam ponham no interior da carrinha, o que não precisam metam nas mochilas grandes e coloquem-nas no interior do escritório”
“Não precisam de se preocupar com água, há bastante para todos.”
"Atenção que à noite as temperaturas descem. Levem um blusão."
"Os vegetarianos têm comer à parte."
"Sim, podem carregar telemóveis e máquinas fotográficas."

Tinha decidido que para além da roupa que tinha no corpo e dos óculos escuros, ia levar um polar, uma t-shirt e um par de luvas tipo primeira camada.
Queria assistir ao nascer e ao pôr do sol, e ao céus estrelados das duas noites que ia passar no Wadi Rum.
A carrinha branca, uma Mitsubishi de caixa aberta, parte em direcção ao deserto.
Em cada lado da caixa, frente a frente, existem dois bancos corridos, forrados com panos. As costas estão almofadas. Cada um delas leva três, quatro pessoas. Agarro-me bem aos apoios do banco, fixo os pés na portinhola traseira que dá acesso à caixa, e preparo-me para os solavancos.
Acelerado pelo movimento da carrinha o vento bate na minha cabeça.
As rodas libertam uma esteira de areia que revolteia no ar e que demora algum tempo a pousar.

A aldeia fica para trás e o deserto abre-se à minha frente. Profundo, imenso, largo, imponente.
A primeira paragem é histórica. Sabbath mostra a fonte de água onde Lawrence da Arábia teria dado de beber água aos seus camelos. Talvez seja, talvez não. Não relevo isto.

Nestes dois dias Sabbath conduz-nos pelo encantamento do deserto e revela-nos alguns recantos do deserto. Caminhamos em canyons, tão fechados que a luz entra com dificuldade e o calor é barrado. Cavalgamos dunas com a carrinha, cruzamos vales onde o deserto se divide em areias de cores diferentes que teimam em não se misturar, sobe-se a arcos e pontes de pedra.
Leva-nos ao topo do Grande Arco. A parede de pedra que se ergue à minha frente e separada de mim por centenas metros de vazio, é gigantesca. Perto dela, tudo se torna pequeno.


O filho de Sabbath, Saleh, junta-se a nós no segundo dia. Com 17 anos é mais comunicativo e expressivo que o pai. Está na escola e pretende tal como o pai, ser guia no Wadi Rum.
Com eles subimos por uma colina rochosa onde camelos, machos e fêmeas, estão separados por um arame quase invisível no trilho, onde existem fósseis marinhos, onde a rocha se fragmenta e estratifica em finas lâminas de pedra traçadas por veios de cores elegantes.
No topo da formação para onde o pai e filho nos conduziram, vê-se o deserto a lembrar um rio de areia estático. A paisagem é ampla, vasta, Na margem oposta à nossa desse rio de areia imaginado, está a fronteira com a Arábia Saudita. Rafael senta-se e contempla toda esta imensidão. Pai e filho fazem o mesmo, mas um pouco mais afastados de nós. Eu, também afastado de todos, pouso um joelho no chão num silenciosa oração de agradecimento a Pachamama, a deusa Mãe Terra que aprendi a reverenciar no Peru e na Bolívia, pelo privilégio de assistir a esta paisagem.
É por estes momentos que viajo.


Os almoços são sempre rápidos, frugais, mas saborosos. É Sabbath que os prepara.
Sabbath é de palavras comedidas, sorriso quase sempre contido e rosto sério, mas não inexpressivo. O seu cabelo é preto e encaracolado, farto, a tocar nos ombros. Os seus olhos são castanhos e densos. As mãos são magras e ossudas.
O guia agora transformado em cozinheiro é despachado, percebe-se que está rotinado nestas tarefas. Tira tachos e panelas do interior da carrinha. Limpa a areia com um fio de água e um pano seco. Abre umas latas, corta cebolas e tomate e faz um refogado simples e delicioso. Antes, estende uma manta esfarrapada pelo uso, na estreita sombra protectora que uma parede rochosa dá quando o sol está quase na vertical, e oferece-nos tâmaras, no fim, há bolachas e chá.
Faz muito com pouco. Ele orgulha-se disso.
"Os beduínos fazem muitas coisas com muito pouco." "Temos que evitar os desperdícios."
"Temos pouca água e temos poucos vegetais, em contrapartida temos muita areia"
Na minha cabeça rapidamente ecoa uma resposta silenciosa:
"E açúcar! Vocês colocam quantidades inacreditáveis de açúcar no chá."

Quase com a mesma quantidade de água com que tirou a areia da louça, lava-a agora.
Um ocidental dificilmente percebe que se possa lavar o quer que seja com tal quantidade de água, mas nada como estar no deserto para percebermos o quanto desperdiçamos o recurso natural mais precioso do nosso planeta.
Se para nós, trata-se de apenas de um movimento de mão rápido e automático para que a água seja algo adquirido, e a utilizamos para lavarmos carros, regar jardins, banhos de vários minutos, ou desvalorizamos uma conduta de água que se rompe e despeja no alcatrão milhares de litros de água que não servem para ninguém, até que esta seja reparada, para os beduínos, ter acesso a este bem fundamental à vida, é uma luta diária.


No fim do primeiro dia parámos num vale. Sabbath cumpria a promessa de encontrar um lugar bonito para assistirmos ao pôr do sol. Apontou para o alto, para umas rochas e disse que subíssemos até ao topo.
O vale era dos que as areias de cores diferentes provenientes das formações que me rodeavam, não se misturavam. Uma ténue esbatida linha mostra onde estas se encontravam. Ela separa a areia avermelhada (arenitos com óxido de ferro) para um lado, a mais clara (arenitos sem óxidos de ferro mas com quartzo) para o outro. Sabbath diz que mesmo quando há ventos fortes elas não se misturam.
Os arenitos mais escuros, mais duros, formam paredes imponentes e verticais, enquanto que os mais claros e mais macios, formam colinas de formas suavizadas e arredondadas.
Do alto dos rochedos que o guia tinha apontado, e enquanto o sol descia letárgico no horizonte, passava ocasionalmente alguns jipes na distância. Minúsculos pontos em movimento com a pintura a fazer refulgir o sol.
O deserto, a paisagem, à minha volta está tingida de uma coloração quente e irreal. A luz tangente do sol banha os céus de castanhos e dourados intensos que se misturam com as areias avermelhadas cor de rubi do deserto.


Na noite do segundo dia chove e troveja forte. O barulho da chuva a bater na tenda é audível. Rio-me por causa da ironia de chover no deserto, praguejo contra mim próprio por causa disso mesmo.
A preguiça tinha-me impedido de assistir ao nascer do sol na noite anterior e com este tempo arrisco-me a ver nada que valha a pena,
Abro a porta da cabana forrada a tecido preto com faixas brancas dispostas horizontalmente.
A chuva tinha abrandado. Chovia muito ligeiramente e os trovões e relâmpagos estão muito espaçados no tempo. A manhã está escura e fria. Sinto a sua mordedura nas mãos e mantenho-as dentro do meu polar. A areia húmida faz sobressair a sua cor avermelhada.
Tenho que caminhar umas centenas de metros para ter uma visão razoavelmente desobstruída do horizonte e afastar-me da grande parede vertical onde as tendas beduínas parecem estar ancoradas.
Espero quase uma hora para que o sol nasça. Um neblina matinal azulada pousa sobre tudo o que vejo.

O sol nasce. Com ele começa a desaparecer a diáfana neblina. É misterioso e esquivo.
Vejo a sua luz, mas não o vejo por estar escondido atrás das rochas que me rodeiam. Adivinho onde está pelo seu halo luminoso. Quando estiver completamente visível, todo este ambiente etéreo perder-se-à. "A beleza das manhãs é efémera. O sol tem sempre pressa em iniciar o novo dia."
Nas rochas, que estão do lado oposto ao sol, ainda estão tocadas pela neblina que se desvanece.
Um beduíno leva uma pequena cáfila, talvez para pastagens ainda escondidas do sol, talvez para algum curso de água que só estes mestres do deserto conheçam.

No regresso para Rum Village, o Wadi Rum dá-me um flash de modernidade. Três camelos com uma carrinha atrás de si, caminham pelo vagarosamente pelo deserto. Na distância, as montanhas são quase engolidas pela forte neblina branca que as cobre e vela enquanto que os camelos e a carrinha estão transformadas em silhuetas. Fixo a imagem na câmara e na memória.

Saio do deserto da mesma maneira com que entrei nele. A olhar para ele.
Como todos os desertos é um local de história geológica, mas também é feito de história humana. Há largas centenas de anos que é terra de beduínos, palco das famosas campanhas militares da Revolta Árabe contra os turcos em 1917 lideradas por uma incontornável figura do séc XX, Thomas Edward Lawrence e de alguns filmes produzidos por Hollywood, incluindo aquele que popularizou T. E. Lawrence como Lawrence da Arábia.


Para mim todos os desertos são poemas. Diferentes, com ritmos diferentes.
De novo a olhar para a esteira de areia que revolteia no ar e que demora algum tempo a pousar, penso em voz alta:
- "E tu Wadim Rum, que poema serás??"
Mantenho os olhos na areia que no ar faz uma cortina que se vai fechando sobre o deserto:
- "Talvez uma ode. Uma delicada e suave ode à beleza, à elegância e ao mistério."
- "Sim. Definitivamente, uma ode."















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