Peru, Lago Titicaca - soletrando: Ti-ti-ca-ca

Quando se traduz o lago Titicaca em números, ficamos com algo surpreendente nas nossas mãos.
Situa-se a mais de 3800 metros de altitude. É partilhado por dois países, o Peru e a Bolívia. O Peru tem a maior fatia dele com 60% localizado seu território. Mas a maior ilha do lago, a Isla del Sol, é boliviana.
São vinte e cinco rios que contribuem para que este lago seja o maior da América do Sul, mas apenas um tem origem nele, o Desaguadero.
Tem 190 km de comprimento, 80 km de largura, com uma profundidade máxima de 280 m.
Como a sua principal fonte de água tem proveniência no degelo dos glaciares andinos, a sua temperatura média ronda os 11ºc.

Mas esta é a parte monótona do Lago Titicaca. A parte verdadeiramente interessante, é que para a cultura inca este lago é sagrado.
Foi aqui que Viracocha, o Deus supremo da religião Inca, criou o universo, os seres vivos e o homem.
Por este gesto criador, o Deus é adorado sem que lhe seja dedicado qualquer tipo de sacrifício. Não se pode destruir em sua honra o que ele criou.
Para os incas, o supremo criador é tão sagrado que raramente o designavam pelo seu verdadeiro nome, antes usavam outros nomes, ou designando-o frequentemente pelas funções que lhe eram atribuídas.

Viracocha começou por criar seres humanos a partir de pedras gigantescas e viviam na escuridão. Mas estes provaram ser indignos da sua criação e o Deus optou por os destruir, fazendo-os voltar às suas formas originais, as grandes pedras. 
A seguir, criou seres humanos mais pequenos, moldando barro. Com as ilhas do lago, decidiu criar o sol, a lua e as estrelas para derramar luz sobre a sua criação. No fim, criou os animais.
Aos seres humanos feitos de barro, ensinou-lhes as técnicas do cultivo, da caça, o fabrico de têxteis e de roupa.


Ti-ti-ca-ca.
Quando ainda não pensava sequer que um dia navegaria nele, era assim que eu soletrava o nome do lago para perceber o quão estranho era este nome para mim. Duas parelhas de silabas duplicadas.
Décadas depois, no convés superior, descoberto de uma lancha, com o rosto molhado pelos pesados salpicos que ela levantava ao cruzar este lago, e olhos húmido pelo vento frio que passava por mim, voltava a soletrar saboreando profundamente cada sílaba e o momento:

Ti-ti-ca-ca.
Por baixo de mim estava o convés inferior, coberto, com assentos e protegido do sol, da água e do vento, mas infinitamente menos sensorial.
Nas margens ainda estreitas, mistas de verde e amarelo, repousam feixes de canas atadas. Quando o lago começa a alargar, as suas águas mostram um azul denso e profundo. O céu estava polvilhado por nuvens que desafiavam o domínio azul.
Foram necessárias mais de três horas para cruzar os cerca de quarenta quilómetros que separam Puno da Ilha de Amantani.

O barco bate com um baque surdo e abafado no tímido e algo frágil pontão de madeira. Este dá para um terreno que parece ser um baldio com um casinhoto que também parece estar abandonado.
Ovelhas pastam erva seca e rala. Não se vêm trilhos marcados. Sobe-se, passa-se por terrenos bem amanhados, por uma cancela e finalmente encontra-se piso regular, pavimentado com cimento.
Por vezes vê-se um ou outro burro a pastar. Não há carros, não há estradas, os postes e cabos eléctricos são escassos.
De vez em quando passa-se por baixo de arcos feitos do que parece ser tijolos de cimento e terracota. São discretas fronteiras. Cada vez que se atravessa um deles, e todos são diferentes, mudamos de terreno, de propriedade.

Uma das formas de trazer recursos, de melhorar as condições de vida às famílias que vivem nesta ilha, é acolher (as poucas) pessoas que querem pernoitar aqui. Para que estes benefícios possam chegar a todas, há um esquema de rotação entre elas. Mas é preciso que tenham condições para tal, ou que as criem. A família de Adolfo, tinha-as.
Adolfo e a mulher, Matilde, moravam com o seu filho, Saturnino, numa casa modestíssima, a avó, Mamma Joana, morava numa divisão separada da casa.
A separar a casa de Adolfo dos quartos dos hospedes, estava um pequeno átrio rudimentarmente pavimentado.

O meu quarto era simples. Para lá chegar tinha que atravessar o átrio e subir umas escadas toscas cujos primeiros degraus era duas pedras assentes uma sobre a outra. Os degraus seguintes eram de madeira ladeados também por um corrimão também ele feito de madeira, tão frágil e bamboleante que decidi nunca usá-lo.
O quarto estava pintado de amarelo torrado claro. Uma pequena janela tapada com uma cortina de tecido branco, uma cama tão frágil com dois pesados cobertores e uma mesa de madeira coberta com um pano branco bordado com flores vermelhos. Em cima dela estava um candeeiro.
A porta de entrada era tão baixa que tinha de me curvar para entrar por ela e quando pousei a mochila na cama e me sentei nela, esta vergou.

Se os quartos estavam electrificados, a casa de Adolfo e Matilde não apresentava quaisquer sinais disso. A noite era iluminada por velas, pelas tristes brasas que ainda sobravam do jantar e uma lanterna de luz fraca e difusa. Os frontais de quem partilhava a casa que nos acolhia, contribuíam para a constante dança de sombras que se projectavam nas paredes.

Matilde e Mamma Joana cozinhavam num forno a lenha aberto na parede da cozinha pintada de rosa esbatido e profundamente enegrecido. Os utensílios eram de barro, preto do carvão das chamas ou de alumínio amolgado e mal tratado pelo intenso uso. Só as duas mulheres cozinham, Adolfo encostado a uma parede prepara uma pasta da qual iria sair uns biscoitos.
Tentei ajudá-las nos seus gestos mais simples, cortar, descascar batatas, mas entre agradecimentos fui determinadamente afastado pelas duas mulheres. Adolfo disse que era assim mesmo:
"Os hóspedes não participam nas tarefas domésticas. São nossos convidados."
Mas creio que é mais do que isso. A cozinha é das mulheres e não é lugar para homens.

O miúdo andava lá por fora e o chefe da família praticamente falava só comigo por ser o único, do trio de pessoas que ele hospedava, que compreendia e falava o castelhano.
"Falas como um aprendiz de espanhol. Falas devagar e marcas muito as palavras.", afirmava Adolfo.
Ele melhorava o meu castelhano e eu mostrava-lhe quais as palavras equivalentes em português, ao mesmo tempo, ele estava bastante interessado nesta questão, explicava as diferenças entre algumas palavras portuguesas e brasileiras e o seu sotaque.
Esclareci Adolfo - "É como o espanhol e o castelhano." Muitas palavras são semelhantes, o sotaque é ligeiramente diferente, mas um entende o outro".

Adolfo, tinha quarenta e oito anos. Rosto redondo e cabelo preto brilhante a acabar numa franja ripada. Quando sorria, as rugas traçavam-lhe o rosto tão profundamente que tornava as maçãs do rosto extremamente salientes e acentuava-lhe o queixo.
Orgulhava-se de trabalhar em informática. Fazia-o sair da ilha. Trabalhava em Puno. Estava lá ao longo da semana e voltava a casa aos fins de semana.
Apesar de nunca ter saído do Peru e não ter ido a Machu Picchu, sabia como era: "Tenho a sorte de ver na internet lugares muito lindos".
Pergunto-lhe o que já viu sobre Portugal.
"As praias do Algarve? Torre de Belém? Pasteis de nata? Lisboa? Porto?"
"Não. Costumo ver os golos do Cristiano Ronaldo."
Agastado. penso: "Sempre a mesma treta, sempre o futebol."
"E preferes Messi ou Ronaldo?"
"Messi, porque fala espanhol" - faz sentido.

A história de Matilde é a história da maior parte das mulheres da ilha e do seu conservadorismo. Passou quase toda a sua vida sem sair da ilha. Mal tem instrução. Mal sabe ler e escrever. O pouco que sabe é Adolfo que a ensina. O castelhano quase que lhe é desconhecido, fala essencialmente a língua quechua.
Não se deixa fotografar, é tímida, adoravelmente envergonhada, e com um sorriso fácil, de encher o coração.

É ela quem trata da única ovelha que a família tem, a Josefa. Pergunto-lhe se ela é para comer. Responde sinceramente que não. É um animal de estimação. Tem um pequeno curral só para si. Por vezes soltam-na. Foi o marido que a trouxe de Puno.
Apenas aproveita a sua lã para fazer e depois vender a quem passa por lá a noite, o chullo, o famoso chapéu andino feito de lã de ovelha que se caracteriza por ser muito colorido e ter em cada lado um tapa orelhas vertical.
Tinha dois feitos. Compro-lhe um. Colorido, mas ao contrário do outro, não é tão exuberante, além que a forma e a escolha das cores fazem sentido. Desgraçadamente iria perdê-lo na Bolívia, dentro do jipe aquando do regresso do Salar de Uyuni.

Passeio pela ilha. Ela é simples e plácida como os seus habitantes. Há pessoas a trabalharem nos campos, homens com enxadas às costas e mulheres carregando sacas, passo por mais arcos, alguns burros e ovelhas, parcelas de terreno de forma quadrada a rodear as casas e no topo das colinas. Brinco com dois putos a jogarem à bola ao lado de um acanhado estádio em construção.
Os miúdos explicam que o estádio está a ser construído por todos os habitantes e que os materiais de construção vêm de Puno. A estrutura parece estar abandonada. Alguma vegetação toma conta da base da parede vertical, do lado das bancadas, e há material e ferramentas de construção meio cobertas pela erva.

Do estádio, vejo bem o lago. Sento-me no chão, num socalco e fico a vê-lo. A água é de um azul escuro bonito e tranquilo. Sinto o silêncio complementado, não perturbado, com vozes distantes e o barulho da terra a ser rasgada pelas enxadas. A brisa é suave como dois dedos a percorrerem o nosso cabelo.

Mais tarde, um ritual ir-se-ia cumprir: assistir ao pôr do sol num dos dois picos da ilha. Um, tem o desenho mais arredondado, com cerca de 4100 metros, dedicado a Pachamama, a Deusa Mãe. O outro, tem uma forma mais íngreme e é ligeiramente mais alto, com 4130 metros, dedicado a Pachatata, o Deus Pai.
A tradição de Amantani diz que em Pachamama o pôr do sol é mais bonito e a vista sobre o lago é mais abrangente que em Pachatata. O facto é que os peruanos são mais crentes na Deusa Mãe que no Pai.
A maior parte dos ocidentais que estavam na ilha nesse dia deveriam estar aqui. Adolfo explicou-me o que fazer lá em cima: chegar antes do pôr do sol; dar três voltas em sentido contrário do relógio à volta do templo em sinal de respeito à Deusa; colocar uma pedra sobre o santuário e fazer-lhe um pedido. Segui à risca as suas sugestões.
Depois pedi um desejo tão vago e tão fácil de se concretizar quanto uma previsão astrológica.

À noite, esta deposita sobre nós uma escuridão cerrada e fria. Limpa de poluição da vida moderna. A noite é pura e as estrelas brilham despuradamente e indiferentes, a quem pasmado olha para elas.













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