Bolívia, Uyuni - uma terra de fantasia

Enquanto o jipe rolava na imensidão daquele lençol branco salgado, por gosto da ficção cientifica, imaginei que esta paisagem podia ser a do planeta gelado Hoth da saga Star Wars.
Recriei mentalmente a famosa batalha de Hoth do Império Contra-Ataca.
No piso regular do Salar, apareceram wampas, tauntauns, sopravam ventos fortes e gélidos, com temperaturas de -60ºc
Uma luta épica de rebeldes de snowsppeders, contra os stormtroopers e os walkers do Império Galáctico: explosões, tiros, actos heróicos e manobras audazes.

Depois fiz alguns ajustes mentais e fui para Marte.
Substitui o branco pelo avermelhado, tirei o sal e no seu lugar apareceu areia.
Na lisura da planície infinita surgiram penhascos e formações rochas gigantescas.
Imaginei que se tirasse a cabeça de fora da janela iria deixar de respirar, os meus olhos saltariam das órbitas e a minha cabeça estouraria como no Total Recall na versão de Paul Verhoven.

A Ilha Incahuasi fica bem no meio desta terra de fantasia e Coqueza... na sua costa.


A Casa do Inca

Para trás fica um hotel de sal, feito de tijolos de sal, cimentados em...sal.
Em frente à entrada, naquilo que parecia ser uma rotunda, várias bandeiras esfarrapadas e já de pouca cor, drapejavam audivelmente sobre o vento forte que se fazia sentir.
No interior tudo é feito de sal, as mesas, os assentos, as janelas. Parece estar em mau estado e apenas uma pessoa estava por lá sentada, ignorando completamente a nossa entrada, numa das mesas a ler um jornal. Apesar de suscitar a minha curiosidade, o hotel parece-me pouco atraente e tenho a certeza que dormir aqui não é nada de transcendente.

O Land Cruiser mergulha fundo, sem hesitar no branco salgado. Sem referências visuais óbvias, o 4X4 rola a uns razoavelmente constantes 100 km/h, sempre na mesma direcção por um tempo tão alargado quanto a paisagem que ele cruza. Por vezes os trilhos estão escurecidos pelas borrachas dos pneus, outros são traçados pela primeira vez. Ocasionalmente um ou outro jipe cruza-se connosco.
Pumawari, o guia e condutor, diz que são pequenas variações nas indistintas montanhas que orientam que os condutores. "À noite, são as estrelas que nos ajudam"
Fica a pairar uma dúvida óbvia dentro de mim: "E quando chove, quando há nuvens? Como é? E no Inverno não se perdem com os vossos clientes??"
Enigmaticamente e dando uma resposta que fica a pairar no ar durante uns segundos, retorque: "É mais complicado."

Em pleno salar, num horizonte solidamente branco, uma ilha surge como uma mancha difusa castanha. Uma nódoa que destoa na alvura generalizada e que ganha contornos à medida que nos aproximamos. Nesta altura já tinha convertido o jipe num barco de fundo chato, incapaz de sobraçar neste mar sem ondas. Suavemente, o meu barco ancora nesta ilha.
Refreio o impulso de subir as calças e caminhar na ponta dos meus pés para não as molhar.
Não estou errado neste impulso, apenas desfasado no tempo.

Se recuar trinta mil a quarenta mil anos, teria mesmo que o fazer. Nesta altura, eu estaria a tomar banho no Lago Minchin, com origem, uns largos milhões antes, num braço do Pacífico.
À medida que os milénios se sucedem e com a elevação da cordilheiras dos Andes, este braço perde-se e o lago que se forma seca mais depressa do que a velocidade que a chuva repõe a água perdida. Desta gigantesca evaporação sobra actualmente uma densa crosta de sal.

A ilha Incahuasi, a Casa do Inca na língua quechua, de origem vulcânica, é o que parece: uma genuína ilha. Se antes dominava um lago, agora destaca-se no maior deserto de sal do mundo.
É completamente dominada por velhos corais que petrificaram e enormes cactos que chegam a atingir os dez metros de altura. Uma placa azul abandonada diz, entre outras coisas, o nome deles: trichocereus pasacana.
Depois do almoço servido em mesas e bancos feitos de sal, o todo-terreno parte para periferia do salar, para Coqueza.








Coqueza

Há muitos, muitos anos, no altiplano boliviano, os vulcões eram homens e mulheres gigantes. Andavam pesadamente de um lado para o outro, falavam e discutiam entre si.
Entre estes gigantes destacava-se Tunupa. Uma mulher muito bonita, muito desejada e amada por todos os outros vulcões.
Um certo dia Tunupa apareceu grávida, sem saberem quem era o pai, os vulcões iniciaram uma ruidosa e prolongada discussão entre si. Os Deuses, fartos desta discussão, decidiram castigar os vulcões imobilizando-os, retirando-lhes a possibilidade de se encontrarem, ao mesmo tempo que os silenciava. Quanto a Tunupa, retiraram-lhe o filho e esconderam-no sem que soubesse próximo de Colchani.
Com a dor da perda, da separação, Tunupa chorou desconsoladamente e durante tanto tempo, que as suas lágrimas ao se misturarem com o leite que jorrava dos seus seios deu origem ao Salar de Uyuni.
Quanto ao seu filho escondido em Colchani, estava triste e sentia-se abandonado pela mãe.
Enquanto admirava a imponência do vulcão Tunupa, acima dos cinco mil e duzentos metros, lembrava-me desta velha lenda aimara. 

Aqui, o sal perde a sua força. Há pequenos lagos onde a vida derrota este império salgado.
Flamingos de um rosa bonito, movimentam-se numa estreita lâmina de água a poucos metros do sal. São das poucas aves que conseguem processar águas de elevado grau de salinidade. Lamas e guanacos pastam neste verde salobro, prestando apenas uma descuidada atenção quando me aproximava demasiado deles e algumas viscachas, um roedor pouco menor que um coelho, que entravam e saiam de tocas, fizeram-me procurar raposas andinas. 
Pumawari, que estava recostado ao 4X4 com as mãos nos bolsos, já tinha dito antes:
"Se vires viscachas, provavelmente haverá uma raposa à espera de apanhar uma desprevenida. Elas são o seu prato preferido."

Olhando à minha falta senti profundamente o quanto etérea e irreal esta paisagem é. 
Atrás de mim está Tunupa de encostas coloridas, bem longe da cores cinzentas e escuras que tanto caracterizam os vulcões, tenho as minhas botas presas numa bolsa de lama que alimenta uma faixa verde plena de vida que literalmente bordeja um deserto de sal e numa questão de poucos metros, desenrola-se como um vasto tapete branco, uma paisagem tão ou mais agreste à vida que o mais árido deserto de areia.
A pequena faixa de água faz descer o azul celestial à terra, reflectindo-o. Ao longe tudo é varrido pelo azul. Até as nuvens estão imbuídas dele. Bebedeiras de Azul, recordo o verso de António Gedeão canta na Pedra Filosofal. Admito que o poeta e professor de físico-química tenha ido buscar inspiração a uma imagem semelhante, impressa numa revista de ciências, à que me absorvia agora. 
De novo, na longínqua distância e suspensos neste limbo azul refulgente que nos acolhe e absorve, rolam jipes levando e trazendo viajantes que tal como eu, têm o privilégio de aqui estar.

Estou atrasado. Pumawari já tinha chamado os seus passageiros e eu continuava atolado na lama e nos meus pensamentos.
Dou passadas largas para ultrapassar a armadilha lamacenta que me prende os movimentos, chego ao jipe bato com os pés no chão e entro nele.
Falta algo absolutamente extraordinário para fechar este dia, o ouro sobre o azul, a cereja no topo do bolo: o pôr do sol.










Ouro sobre azul

Pumawari pára o seu 4X4 ao lado de um Lexus que já tinha estado connosco em Coqueza. Os condutores conhecem-se.
Estamos parados no meio do nada. O horizonte é tão vasto que parecemos que somos os únicos humanos à face do planeta. Penso: - "Um ermo num local ermo."

A temperatura desce, o frio desce, mas o sol insiste em não o fazer. Procuro uma referência no horizonte que me permita avaliar que se de facto ele desce. Duvido que o esteja a fazer. Só resta esperar. Coisa que já fazemos há algum tempo. 
Pumawari conversa com Martin. Ambos cruzam o deserto há vários anos e quase diariamente.
Tinha-lhe perguntado como ele via esta terra de fantasia após quase cinco anos a conduzir nele.
- "Nesta altura, na estação seca, o salar é monótono. Ele está seco, é muito igual. Mas permite-nos viajar e explorá-lo durante vários dias ao logo de toda a sua extensão."
O condutor larga os meus olhos e olha em frente, para a distância, e como que falando apenas para a paisagem, continua:
- "No inverno nunca me canso de o ver. A nossa mobilidade é muito reduzida mas a paisagem é não fácil de descrever. Tem que ser vista. Quando chove o salar retém uma fina película de água com poucos centímetros de profundidade. Torna-se um espelho perfeito. 
Reflecte tudo. As nuvens, as ilhas, os jipes, a cor do céu, um nascer do sol, ou um pôr do sol. O que estiver a cima ou pousado sobre ele, fica reflectido."
Num sorriso um pouco enigmático e num tom algo misterioso, inclina-se sobre mim e em voz baixa acrescenta:
- "Se não tivermos cuidado até os nossos pensamentos ficam reflectidos, à mostra de todos."

Livia optou por esperar dentro do Lexus; eu, Maribel, Tish e John, ficámos cá fora à espera que o sol descesse do pedestal.
Noto que aos poucos e poucos as sombras vão-se alongando cada vez mais e o branco salino sob os meus pés vai mudando de cor. Primeiro imperceptivelmente com um cinzento quase a fundir-se com as cores dos dois jipes, depois com tonalidades arrebatadoras de laranja.
Não havia modéstia no seu descer. Dardejava um olhar intenso, flamejante. Puro branco, puro amarelo. Parece irritado, talvez se questionasse porque estávamos ali a perturbar a hora do seu recolher. 
Bem na linha do horizonte as suas cores finalmente amansaram, tornaram-se mais amigáveis e menos inquisidoras. Num assomo final de indulgência, o sol foi dramático no cair do pano, deixando que aparecessem as vibrantes pinceladas finais do dia que tinha terminado escassos minutos antes.

O frio faz-se sentir de uma forma mais incisiva. Todos estão dentro do jipe. Sou o único que está cá fora. 
Pouso a câmara no capot do Toyota, sento-me na sua grelha, meto as mãos dentro dos bolsos e olho em frente, para os despojos finais do dia e penso nas várias horas que passei no Salar de Uyuni, na impressão que este dia deixou em mim:

"É para isto que viajo, para ultrapassar a barreira do papel ou de um ecrã. Não ter que depender das viagens contadas, escritas e filmadas por terceiros, para poder construir e ter memórias em primeira mão. Para que os sorrisos, as lágrimas, as emoções, os seus arrepios, sejam genuinamente meus. Aguçar, estimular os meus sentidos embotados preenchidos por meses de um horário, de um trabalho que me põe horas a fio em frente a um pc e agarrado a um telemóvel. 
Poder tocar no imaginário, criar um novo imaginário, almejar chegar ao fim do horizonte para o poder espreitar e depois olhar e pensar em desbravar um novo horizonte, cruzar uma nova fronteira, ou a mesma fronteira de maneira diferente.
Poder dizer, poder afirmar para mim, para os outros: eu estive lá, eu vi, eu toquei, eu senti.
Conseguir pasmar minha a alma, inundar tão completamente os meus sentidos ao ponto de me conseguir esquecer, ao ponto de reduzir por uns minutos a minha existência à épica glória de um pôr do sol na maior planície de sal do mundo." 









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