Sri Lanka - you name it

Séculos antes de Cristo nascer, o seu nome era Thambapanni (a terra cor de cobre). Estrabão, o geógrafo grego nascido no ano 63 (talvez 64) aC, deu-lhe o nome que quinze séculos depois Luís Vaz de Camões cantaria logo no início da epopeia dos Lusíadas: Taprobana, do grego antigo A Costa de Parvan.

Com a chegada no início do século XVI dos primeiros colonizadores europeus, os portugueses, estes rebaptizaram a ilha para Ceilão. No entanto não conseguiram conquistar a totalidade do território. 
Quando os holandeses chegaram em meados do século XVII, uniram-se ao o rei cingalês baseado em Kandy, para o ajudar nas batalhas contra os portugueses. Com a derrota dos segundos, o nome sofreu um ajustamento para Ceylan e os primeiros assumiram o controlo da ilha.

Em inícios do século XIX, a coroa britânica tornou-se a potência governante e pela segunda vez o seu nome foi ligeiramente modificado. Tornou-se Ceylon e assim manteve-se até 1972, altura que a ilha ganhou a sua independência e o seu nome adquiriu o nome actual de Sri Lanka, a Ilha Resplandecente.


Baixas expectativas

Foi mesmo uma questão de perguntar “porque não??” e aproveitar a oportunidade que surgiu para viajar para a antiga Ceilão. O Sri Lanka não era um país que estivesse no meu horizonte de viagens nos próximos dois ou três anos. 
A proximidade com a India - os dois países estão separados entre si por cerca de 65 km de mar fazia-me prever um país caótico, desorganizado, poluído, sujo, talvez violento. Um país a puxar, a exigir o máximo de mim e dos meus sentidos.
Estive no norte da Índia em Março de 2016 e ainda estava psicologicamente cansado dessa viagem.
Para quem é experiente, sabe que a Índia tem várias Índias dentro si. O norte e o sul do país em forma de diamante são muito diferentes na maneira como estão organizados, na maneira como interagem socialmente entre si e com quem os visita.
Não conhecendo o sul da Índia, via o Sri Lanka como um reflexo daquilo que é o norte, aquilo que experienciei. Felizmente não é.


Religiões

Ao contrário do que pensava, o budismo é a religião maioritariamente seguida no Sri Lanka. Cerca de 75% do país é budista e terá chegado à ilha bem, bem cedo na sua história, estima-se cerca de 3000 anos antes de Cristo. O hinduísmo foi introduzido pelos hindus tamil, no século XIX com origem no sul da Índia, tendo pouco menos de 15% de seguidores. O islamismo (chegou com os negociantes árabes por via da Rota das Especiarias nos finais do século VII) e o cristianismo (introduzido pela mão dos portugueses no início do século XVI), disputam o pouco que sobra, com vantagem para os primeiros.

A religião, a forma como ela é interpretada e vivida, é uma força modeladora relevante de um país e da sua sociedade. Acredito que terá sido o budismo que diferenciou o Sri Lanka relativamente à Índia, tornando-o mais organizado e fluído.
Tem regras que são razoavelmente seguidas e cumpridas. A sua sociedade é prática, funcional e fiável. As suas estruturas sociais estão presentes e servem a população no todo e não apenas uma elite. Existe um propósito, uma lógica definida, um objectivo a ser seguido e atingido, que vai bem para além da caótica sociedade indiana, onde quer animais, quer seres humanos lutam primariamente pela sua subsistência.

Mesmo sendo essencialmente budista, a sociedade cingalesa rege-se muito subtilmente, apesar de proibido, por castas. Um sistema de estratificação social vertical e muito hermética onde as castas acima não se relacionam com as de baixo e um conjunto de profissões estão já destinadas.
Homem e mulher participam de igual forma na sociedade cingalesa e não é facilmente perceptível a discriminação entre sexos. Tradicionalmente a mulher está ligada às actividades caseiras e o homem para os negócios, mas claramente esta divisão está muito esbatida neste momento.


Três mulheres

Carla, Paola e Souede são exemplos claros disto, especialmente se tivermos em conta as origens de cada uma destas três mulheres.
Carla é uma portuguesa casada com um cingalês. Conheceu-o durante os sete anos que esteve a trabalhar em Itália. Começou católica e aos poucos e poucos o budismo foi conquistando-a. Vive em Galle, gere um eco lodge em Kataragama, muito próximo do Parque Nacional de Yala e tem um filho com sete anos.
Souede é marroquina. Através de um intercâmbio estudantil, passou das montanhas de Marrocos para a longínqua Austrália, Sidney. Aqui conheceu o seu actual marido, um cingalês muçulmano. Veio viver para o Sri Lanka, onde gere o hotel da família do marido em Galle. "Estranharam nos primeiros dias a chegada de uma marroquina, mas rapidamente se habituaram." Quando me despedi de Souede, reparei num livro pousado sobre a mesa: Como ser uma Boa Mãe.
Paola é italiana. Tal como Souede e Carla, vive em Galle. Tem uma pequena loja de recordações e artesanato - boa parte feita por si, particularmente a roupa. Também ela é casada com um cingalês que conheceu em Itália. Quando visitou o Sri Lanka pela primeira vez, não duvidou que era um bom país para viver.
O facto de Paola ser católica, que ainda é, e o marido ser budista não colocou qualquer tipo de problema na relação ou com a família que a acolheu.

Qualquer uma destas três mulheres reconhece que é um país que está a dar fortes passos para o desenvolvimento e a tolerância para com os estrangeiros é muito grande.
"Por vezes em excesso." - confirma Carla. "Frequentemente põem-me à frente deles próprios nas filas. Esta deferência consegue ser bastante embaraçante."


Palavra essencial: tolerância

Tolerância é uma das palavras essenciais para descrever o Sri Lanka.
Para além da tolerância e do bem receber a quem os visita ou vive lá, há também uma tolerância surpreendente relativamente às religiões. Templos hindus e budistas, mesquitas e igrejas convivem de muito perto com os outros.
Existem dois locais sagrados no Sri Lanka. Um é Sri Pada, o outro é a cidade de Kataragama.
Sri Pada, ou Adams Peak, é o expoente máximo desta convivência pacífica entre religiões.
No topo de uma montanha de forma cónica com uma altitude de pouco menos de 2250 metros, existe uma marca que, dependendo da crença, tem origens diferentes.
Se falarmos com um hindu, ele dirá que a marca foi deixada por Shiva. Se estivermos lado a lado com um budista, defenderá que a pegada pertence a Buda. Mas se o nosso interlocutor for muçulmano ou cristão, afirmará que foi Adão que pousou lá o seu pé, após a expulsão do Éden.
No topo, as quatro grandes religiões cruzam-se sem animosidade ou rivalidade.

Em Kataragama, durante a cerimónia puja do fim dia, onde hindus e budistas agradecem aos Deuses o dia que termina, a Carla corroborou esta tolerância religiosa:
"No Sri Lanka comemoram-se todos os dias sagrados das diversas religiões. É feriado para todos. Quer professem ou não, essas religiões."


As ruas, o verde e o picante

Se tolerância ajuda a definir a sociedade e o modo de viver do cingalês, o verde define o país e o picante a gastronomia.
Saindo fora da influência da costa, em todo o país pontifica o esplendor do verde. A viagem de comboio de Hatton - Nuara Eliya - Hella é de uma beleza imensa e um majestoso tributo a esta cor.
A baixa velocidade, acompanhada pelos solavancos metálicos dos carris de sabor ferroso, a paisagem bela e variada, desfila perante os nossos olhos: vales profundos e elegantes montanhas, neblinas densas e inúmeras cascatas, imponentes gargantas e frágeis pontes.

O picante é quase omnipresente na gastronomia cingalesa. Dificilmente se foge a ele. Pedir algo sem picante ronda a inutilidade. A experiência diz significa que ele está lá na mesma mas que é suportável. Pedir pouco picante ou com picante é um acto de fé.
Coragem é comer algo extra picante ou pedir um reforço do mesmo. A sobrevivência da garganta e dos lábios à experiência não está garantida, mas uma torrente de lágrimas nos olhos e um rosto comparável a um semáforo vermelho de olhos esbugalhados é uma certeza que não se questiona.

A vida cingalesa desenvolve-se nas ruas. É aqui que se vivencia o Sri Lanka.
Lojas de roupa, bancas de fruta e frutos secos, comida de rua estão presentes em todo o lado e não devem ser falhadas. Partilhar uma mesa com locais nos seu próprios restaurantes é uma experiência genuína a não perder. Num inglês por vezes difícil de perceber, gostam de saber de onde vimos, o que já conhecemos, há quanto tempo estamos a visitá-los. E de caminho explicam o que estamos a comer e podem até oferecer do seu próprio prato se necessário.

As ruas são vibrantes, movimentadas. Cheias de pessoas e vida.
São um campo de batalha intenso e competitivo mas não hostil de autocarros, camiões, táxis e motinhas. Enxames de impacientes tuks tuks conduzem destemidamente, quase invencivelmente entre todos eles, preenchendo espaços que só eles são capazes de ver. E se, só conseguirem preencher uma pequena parte dele, garantidamente que no arranque seguinte ganharão a sua totalidade.
Pelas ruas, pelas estradas, nos passeios, avançando e recuando ou em pequenas corridas, há braços no ar de incansáveis e também destemidos vendedores de snacks, água e refrigerantes.


Os Burghers

Para quem tem apelidos portugueses, os sorrisos abrem-se de uma forma rasgada e particularmente sincera. Para este povo a presença portuguesa é reconhecida, felizmente não por Cristiano Ronaldo, mas por aquilo que é a sua essência: o legado histórico e pelos... nomes e apelidos.
Por todo o lado há Silvas, Gomes, Pereiras, Oliveiras e Costas. Encontrei vários Pedros, Fonsecas e Fernandos.

Se alguém tem um nome, um apelido igual ao nosso, teremos vários minutos garantidos de tagarelice divertida e sincera, troca de histórias das famílias, sorrisos e gargalhadas rasgadas com vários dentes podres e amarelos à mostra.
Esta ligação a Portugal, cingaleses com descendência portuguesa, usualmente cristãos, ganha um nome curioso e bastante conhecido por todo o país: os Burghers.
Termo que foi cunhado pelos holandeses a partir da mesma palavra. Esta comunidade de cingaleses ganhou estatuto jurídico em finais de do século XIX, em 1883.
No entanto o termo não designa exclusivamente os cingaleses com ligações aos portugueses. A mesma palavra designa da mesma forma os ascendentes de holandeses.


Por exemplo: o Sri Lanka e o Camboja

É tentador comparar o Sri Lanka do sul asiático com o Camboja do sudeste asiático.
Ambos são países têm um passado recente muito sangrento. Souberam ultrapassar divisões internas, pacificar as suas sociedades. Quer num, quer no outro, ainda existem algumas tensões residuais e apostam no crescimento do turismo para desenvolver os seus países. Ambos preservam particularmente bem a sua identidade e culturas, (ainda) sem grandes concessões ao turismo ocidental.
Nos dois, as suas gentes são bem afáveis, sorridentes, divertidas e espontâneas. Representam bem aquilo que é mais icónico no continente asiático: trato fácil, simpatia e espontaneidade.

No caso da ilha em forma de uma bonita e elegante lágrima, o futuro chegará mais cedo, mais sustentado e não tão dependente do turismo como no caso do Camboja.
Tenho bem presente que Pol Pot e os seus Khmers Vermelhos provocaram entre os anos de 1975 a 1979  perdas de vida no Camboja difíceis de compreender. Rondaram quase os dois milhões de mortos. Perdas essas que após quarenta anos e várias gerações depois, os cambojanos ainda estão a recuperar. E serão precisas mais algumas gerações para o conseguirem na totalidade.
O Sri Lanka, pelo seu lado, teve uma guerra civil que durou muito mais tempo. Nos vinte seis anos, entre 1983 a 2009, ela custou a vida a cerca de setenta mil cingaleses.


You name it

O quer que gostemos, desejemos, pensemos de uma viagem ou de umas férias, o Sri Lanka tem.
Selva, florestas tropicais, montanhas, mar e praias pristinas. Pode-se fazer surf, mergulho, snorkling, escalada e trekking. Tem vida selvagem variada, uma cultura e história que definitivamente vale a pena explorar e perceber.

O seu folclore é rico e colorido, a gastronomia, incluindo a de rua, mesmo não tendo muitas vezes o melhor dos aspectos, é aromática, saborosa, intensa e como já sabemos... picante.
Os arrozais, competem em extensão com as plantações de chá (mas perdem no verde), as viagens de comboio são do melhor que se pode fazer no mundo e para os apreciadores de canela, saibam que tem as suas raízes neste país. É o maior produtor e exportador desta especiaria do mundo.
O Sri Lanka adequa-se na perfeição a uma expressão inglesa que gosto muito e que resume em três palavras tudo o que este país sul asiático nos pode oferecer: you name it.


Sri Lanka?? Agora!

Li em vários sítios que o Sri Lanka é um resort em forma de ilha.
A palavra resort é assustadora e até tenebrosa. É sinónimo de comércio exagerado, caro e plastificado. A arquitectura descaracteriza-se, perde-se a espontaneidade local e em tudo falta a genuinidade. Significa isolamento e elitismo.
Por ela, baixei bastante as minhas expectativas para esta viagem. Felizmente que não o é. Pelo menos até ver. Em poucos anos eles existirão, multiplicar-se-ão e serão muito bem sucedidos. O fluxo de turismo para a pérola do Índico será monumental, o país presta-se para isso. O que é preocupante. Pensemos no que está acontecer a Lisboa, Barcelona, Amesterdão, Veneza ou Roma, que estão praticamente a serem destruídas pela procura e oferta excessiva de turismo.

Claro que existem outros países mais atraentes, mais emblemáticos, que possam, que devam ser explorados primeiro. Mas se a oportunidade aparecer, se no nosso horizonte de viagens surgir o Sri Lanka, então não a devemos perder ou afastá-lo desse mesmo horizonte.
É um país no qual se deve mergulhar de cabeça, ir fundo nele. Abrirmos os nossos braços, os nossos olhos e os nossos sentidos a ele.




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