aldeias de xisto, Catarredor - a Terra do Nunca

Tem um nome meio estranho: Catarredor. Os livro dizem que é uma deformação de "ao teu redor"
Por aqui os caminhos são estreitos, escuros, cruzados entre si, as casas são baixas, imersas em verde. Estão num limbo da existência, um misto de indecisão entre a recuperação e o abandono cuidado.
Sente-se a serra em pleno. Talvez seja esta a aldeia onde os mistérios serranos estão mais presentes, mais coloridos. Fantasia, seja a palavra que melhor descreve o seu ambiente.

É uma palavra que se adequa. Parece a Terra do Nunca. Em vez de um Peter Pan, há vários.
Catarredor, é um local de gente que não cresceu, gente não quer ser encontrada, gente que procura um estilo de vida alternativo. Alternativo, porque não conseguiram coexistir com o considerado "normal", ou alternativo, porque o "normal" lhes foi negado ou por eles rejeitado.
O seu compromisso é com o momento, e remetem o futuro para um perpétuo presente.

Enquanto desbravava os trilhos desta aldeia, Ma Baker, dos inconfundíveis Boney M, fazia-se ouvir claramente.


No alpendre de uma casa meio recuperada, meio abandonada, encontro Zapa, de nome verdadeiro Manuel, o Wolfgang e a Ana.
Wolfgang está em Portugal, no Catarredor há oito anos. O seu português é tão mau como o seu inglês.
Come um gelado, que parece ser de relance, um fizz. Está sentado num banco tosco, corrido de madeira. Três ripas de madeira apoiadas em duas secções de serradas um tronco de árvore. Ele chega-se para o lado e oferece-me um lugar e uma trinca no gelado. Aceito o lugar, as ripas vergam acentuadamente sob o nosso peso combinado mas dispenso a dentada.

Fala mais em alemão e sorrisos comigo que em outra língua qualquer.
Pergunto-lhe de onde vem e o que faz. Encolhe os ombros. Ou por não ter percebido a minha pergunta, ou por não fazer nada. Aposto na segunda hipótese.
"E como chegaste aqui?"
"Caminhando pela estrada."
Um perdido com poiso, em vez de um perdido em caixas de cartão numa cidade qualquer ou calcorreando estradas aleatórias à procura de um destino que não existe.
Se estivesse na Índia, Wolfgang seria um sadhu.

Zappa é outra história.
Fala rápido. É escanzelado, barba e cabelo desgrenhados, roupa que não lhe sai do corpo há alguns dias. Apresenta-se:
"Sou o Zappa, com dois pês. Tal como o músico."
Sem esperar pela pergunta, ele explica - "Quando eu era jovem, era muito magro e tinha o cabelo comprido e usava bigode. É daí."
Sem parar, a explicação prossegue - "O meu verdadeiro nome é Manuel. Mas não gosto do nome e quando a minha mãe me tratava por Manuel, não gostava. "Dizia-lhe que ninguém me conhecia por esse nome, que os meus amigos me tratavam todos por Zappa."

"Também és Pedro??? Conheço um. Vivo ao pé dele."
"Estivemos há pouco também com um. Vive no Vaqueirinho"
"Esse mesmo! Sou vizinho dele. Ele estava acordado a essa hora???"
Zappa estava genuinamente surpreendido.
A passagem por Vaqueirinho tinha sido por volta das onze da manhã e agora passava da uma da tarde.
A falar com ninguém, desta vez falando para ele próprio repetiu incrédulo e quase parecia preocupado: "Ele estava acordado a essa hora???"
Nem consigo imaginar a que horas o Pedro, costumava acordar. Duas, três, quatro da tarde??

"Zappa que fazes para ganhar a vida?"
Ironiza: "Sou modelo do Facebook."
Eu continuava sentado ao lado de Wolfgang que ainda lambia o gelado, Zappa ostensivamente olha para a minha máquina fotográfica, grande e pesada, que estava entre as minhas pernas, com a objectiva virada para baixo, para o chão.
"Epá, vocês com essas máquinas grandes, são fáceis de topar. Nós percebemos que estão a tirar fotografias e quando não queremos, vocês até não tiram."
Quase sem respirar e nem deixar de gesticular - "Mas com as pequenas e os telemóveis, tiram sem ninguém se aperceber. Estamos a falar com o pessoal, na boa, viram o telemóvel para cima e... pum!!!"
"Depois vêm ter comigo e dizem: olha Zappa, estás no Facebook"
Nervosamente, conclui enfatizando o que lhe ia na alma: "Não gosto disso, não gosto disso."
Após a conversa, estava a pensar em pedir-lhe uma fotografia, mas quase de imediato desisti.
"Quando não és modelo do Facebook o que fazes para viver aqui?
Vago e aparentemente distraído, como assobiasse para o lado, Zappa responde - "Faço umas coisas por aí. O governo podia ajudar mais."

Ana, estava atenta à conversa mas não participava. Baixa, cabelo louro apanhado, calças de ganga justas a roçar o imundo. Com uma colher de pau mexia vigorosamente, talvez uma sopa, numa panela de alumínio amassada pelo uso.
Zappa falava por ela. A sua casa não era longe dali e se prestássemos atenção ouvíamos a música Le Freak dos Chic.
"Estão a ouvir a música? Vem da casa da Ana, - fica ali, um pouco atrás de nós". Zappa aponta para o sitio com o queixo e confirma: "Não é, Ana?"
Laconicamente, esta respondeu: "Sim, é."

Em tom de despedida, levanto-me, as ripas de madeira voltaram à posição normal. Wolfgang ainda não tinha acabado o gelado, Ana entretanto tinha colocado a panela ao lume e olhava atentamente para ela. Apenas Zappa se movimentou para cumprimentar e despedir.

Quando me despedi deste pequeno grupo, tive a clara sensação que tinha estado a falar com os meninos perdidos de Peter Pan. Pessoas que claramente tinham um estilo de vido alternativo, talvez marginal, gente que dificilmente se enquadraria na sociedade ou que esta seria capaz de os absorver, de os entender. São pessoas que encontraram a sua Terra do Nunca numa aldeia aninhada nas encostas da Serra da Lousã.

Comentários