Jordânia, Petra - o meu Tesouro

A 21 de Outubro de 2012, tinha à minha frente uma daquelas visões, que desejava muito mas que verdadeiramente não acreditava que um dia a vivesse: Machu Picchu.
Imersa durante várias horas numa sólida e pesada bruma, quando a cidadela se desvendou, bela, encantada e misteriosa, caí de joelhos perante a concretização de algo que evitei sempre chamar sonho.

Quase exactamente quatro anos e meio depois, em 18 de Março de 2017, outro desejo, também a rondar o sonho, concretizava-se. Petra, a antiga capital dos nabateus fundada trezentos anos antes do nascimento Cristo, situada entre dois mares, o Morto e o Vermelho, e um deserto, o Wadi Rum, era uma realidade. 

Fui na melhor altura possível. Eram muito poucos os que andava na cidade pétrea.
O conflito que decorre na Síria, país que faz fronteira com a Jordânia, afastou e está a afastar milhares de turistas de Petra e de outros pontos de interesse deste país. O medo da contaminação da violência síria e de por isso a Jordânia se tornar um país inseguro e susceptível de atentados nos locais mais procurados por turistas, fez com que estes fugissem deste país mais depressa que o diabo da cruz.
Nada mais errado. A Jordânia é uma pérola de paz no meio do belicoso e fervente Médio Oriente.


Por muito que quisesse não conseguia tomar atenção ao guia. Com um nome árabe tão vulgar como um Silva português, Mohamed desfiava histórias de milénios num inglês rapidíssimo e muito razoável. Entrepostos comerciais entre a Ásia e Arábia, lugar de passagem das rotas de especiarias indianas e da seda chinesa, túmulos, sismos, inundações e que a primeira vez que um europeu entrou em Petra foi em 1812. Um aventureiro suíço de nome Johann Ludwig Burckhardt que disfarçado de árabe conseguiu convencer um beduíno a levá-lo até lá.

Mohamed pára à entrada do Siq e faz uma pequena introdução:
- "Como em toda a Jordânia, chove muito pouco aqui, mas quando acontece Petra pode enfrentar inundações repentinas. Em poucos minutos uma grande quantidade de água pode surgir e arrasar tudo à sua frente."
A respirar entre frases e de costas para a entrada do desfiladeiro que se abria atrás de si, prossegue sem hesitar:
- "Em 1963, apesar de muito seco, o solo não absorveu a forte chuva caída e toda ela foi canalizada para o Siq, matando vinte e quatro turistas que se encontravam no seu interior.
No ano seguinte, o governo decidiu construir uma pequena barragem que desviasse uma parte da chuva para fora do desfiladeiro. Quando começaram as obras, descobriram que incrivelmente os Nabateus tinham exactamente feito o mesmo dois mil anos antes. Parte dessa barragem ainda hoje é visível à entrada do Siq."
Virou-se para o seu lado esquerdo e com o indicador espetado, ilustrando a sua afirmação, apontou uma muito discreta barragem de pedras cuidadosamente empilhadas umas em cima de outras.

Foi aqui e a olhar para ela que decidi que me ia atrasar relativamente ao grupo que estava com o guia.
Até ao final do desfiladeiro todos os meus passos seriam dados compassadamente. Saboreados um a um, sabendo no fim que, tal como num arco-íris, encontraria o pote de ouro.

O Siq é um estreito e alto desfiladeiro, aberto numa espantosa mistura de movimento irrequieto de placas tectónicas, força das águas e engenho humano, que serpenteia pela montanha. São oitenta metros de altura com várias centenas de metros de comprimento. No ponto mais estreito tem três ou quatro metros de largura e ronda os doze metros na largura máxima.
O caminho que pisava oscilava entre a pavimentação recentemente restaurada e alguns retalhos das lajes do bimilenar pavimento original.

Entro no desfiladeiro. De ambos os lados, escavados e esculpidos na rocha das paredes há relevos, canais de água, esculturas, nichos e pequenos santuários dedicados a deuses quase reduzidos a pó pelo tempo que passou por eles.
A luz em poucos metros fica para trás. Os raios de sol penetram dificilmente, batendo apenas nos topos deste corredor de pedra. Os contrastes de luz e sombras são intensos. Sem chegar ao solo, é a reflexão da luz solar nas paredes verticais que ilumina o seu interior numa variada palete de tons na rocha colorida. A rocha está aromatizada a cores quentes - castanhos escuros, vermelhos e rosas a metamorfosearem-se um no outro, amarelos envelhecidos.
Um ligeiro rasgo de azul puro, bem no alto, diz-me que o céu existe.








Passam por mim várias pessoas com câmaras na mão e em passo meio corrido. O ruído de fundo aumenta consideravelmente e adivinho o porquê. Contorno o Siq numa última curva sinuosa e apertada e o ícone surge. Sorrio, baixo os olhos para os meus pés e fecho-os. Imprimo a ferro e fogo na minha memória o que tinha visto segundos antes. Subo de novo os olhos e desta vez fixo-os definitivamente à minha frente.
Depois da visão da brancura dos glaciares do Kilimanjaro na atmosfera límpida e fria de quase seis mil metros de altitude no tecto africano; da visão de Machu Picchu coroada por uma neblina diáfana e misteriosa nos andes peruanos; surge bem na minha frente, a helenística fachada rosada do Tesouro recortada e realçada pela estreita abertura da escarpa escura do desfiladeiro que aqui termina.
"Já podes morrer", penso.

Não será neste momento que também eu tirarei essa fotografia, tirada incontáveis e inúmeras vezes.
Esperarei pelo fim do dia, pela quietude e silêncio da cidade desenhada na pedra. Planeio ser um dos últimos a sair.
Chegou a minha altura. As pessoas caminham vagarosamente em direcção à saída. Há pessoas de mãos dadas, casais, pais que seguram as mãos dos seus filhos. Um grupo de quatro pessoas mostram fotografias uns aos outros, parando frequentemente para as comparar. Um homem alto e magro, segura, apoiado no seu ombro esquerdo, um tripé com uma máquina fotográfica presa a ele. Caminha em passos lentos. Tenho a certeza que está absorto nos seus pensamentos.




Estou só em frente ao Tesouro - El Khazneh em árabe - só para mim. O silêncio também. E a paz.
De cada um dos lados da saída do Siq, existem bancos onde as pessoas se podem sentar e olhar para este espantoso trabalho feito de pedra. Sento-me naquele que está do lado esquerdo por uns minutos. Apenas um guarda a andar de um lado para outro, a falar com um telemóvel, se interpõe entre mim e o objecto amado. Tiro várias imagens. Todas iguais. Bem, nem todas. Em algumas permito que o guarda apareça. Amanhã farei o mesmo e da mesma maneira.
Está na hora. Entro no desfiladeiro e tiro mais outra última fotografia da fachada de El Kahzneh emoldurada pela rocha escarpada.

Ao contrário do que o nome, o Tesouro, pelo qual é mais conhecida esta fachada esculpida na pedra possa sugerir - em tempos pensava-se que grandes tesouros estariam escondidos no seu interior - é na realidade um mausoléu, um túmulo. Esta crença deixou cicatrizes no topo da parede. Na esperança de se encontrar os tesouros que nunca existiram, a estrutura foi baleada várias vezes e as marcas de bala são visíveis para olhares mais atentos.

A luz desvaneceu-se no Siq. As cores perderam algo do seu encanto. O azul do céu está agora mortiço, sem vigor. A rocha parece adormecida num cinzento frio. Descansa, diria eu.
Deixo o desfiladeiro para trás e olho de novo com uma profunda admiração para a velha barragem que os Nabateus construíram, antecipando em dezenas de séculos uma solução que foi pensada em pleno século XX.
A poucos metros da saída do recinto, do meu lado direito, sobre um conjunto de túmulos bastante roídos pelo tempo, vejo que a lua já nasceu. Imagino esta via cheia de actividade: mercadores de seda e especiarias de passo apressado, povo, senhores, soldados de armaduras tilintantes, cascos de cavalos a ecoarem pelas paredes, camelos de alforges cheios, aromas exóticos no ar, cheiros de animais, misturas de vozes de diferentes países. Uma actividade capaz de fazer inveja a muitas capitais do nosso tempo. No seu auge Petra chegou a ultrapassar os trinta mil habitantes.

Saio do meio do pavimento e encosto-me para o lado direito da via. Antes de o fazer viro-me para trás para ter a certeza que não atrapalho a azáfama de alguém mais apressado ou que não sou atingido por um animal nervoso e desembestado.










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