Uganda, Bigodi - quadros de uma exposição


Bigodi é uma aldeia rural ugandesa, situada na base das Montanhas Rwenzori, as muito conhecidas e lindíssimas Montanhas da Lua, a poucos quilómetros do Parque Nacional de Kibale em Kanyanchu.
A relação de Bigodi com o turismo segue logicamente a do Uganda: completamente isolada do turismo durante os anos em que Idi Amin e Milton Obote estiveram no poder. 
Em 1968 por força de um golpe de estado liderado pelo actual presidente ugandês - Yoweri Museveni - a situação começou a mudar. Nos anos iniciais da década de noventa do século passado, principalmente na altura em que o Parque Nacional de Kibale foi criado, em 1993, o turismo começou a chegar regularmente ao Uganda e a Bigodi. 

Desde essa altura que a aldeia tem uma relação curiosa com quem a visita. 
Depende em primeira instância do turismo, mas mantém um certo isolamento e independência social relativamente ao mesmo. Ou seja, a vantagem financeira que retira do turismo não compromete o seu modo de vida, não contemporiza com o mesmo. Isto faz com que Bigodi seja extremamente interessante de visitar mesmo que para isso tenha de se pagar.
No entanto, ao longo da visita e particularmente no fim dela, uma densa dúvida tinha-se instalado: "Será que verdadeiramente Bigodi usufrui do dinheiro que o turismo lhe traz??"
Aos meus olhos, a vila apresentou-se crua, pouco confortável e básica. Não muito diferente de outras vilas por onde já tinha passado e que ainda iria passar.


Contratei Simon no interior de um pequeno barracão verde, decorado com alguns posteres pendurados sobre Bigodi e chimpanzés do Parque Nacional de Kibale. Um cão, meio ensonado e indiferente à minha proximidade, estava deitado cá fora na areia avermelhada, ligeiramente húmida e atapetada por folhas de árvore e arbustos.
Enquanto espero por ele um grupo de miúdos tenta conquistar a minha atenção brincando uns com os outros e fazendo caretas e dando pulos à minha volta.
Vestindo um camuflado verde, Simon, como quem percorre uma galeria de um museu, demorando mais ou menos tempo conforme o interesse que o quadro exposto nas suas paredes, conduz-me por entre caminhos de terra batida vermelha serpenteando por entre as casas. Com as mãos vai mostrando as infraestruturas mais importantes que a aldeia tem: escolas, mercados, campo de futebol, reservatório de água, centro de saúde, café e um... curandeiro.


O centro de saúde é recente. À primeira vista, é uma casa não muito diferente das outras, apesar de ser um pouco maior, mais cuidada e pintada de um branco que destoa completamente do vermelho amarelado que nos absorve. É encarado por parte da população com alguma desconfiança. Mais tarde, Simon iria explicar o porquê desta resistência ao centro de saúde mas que aos poucos e poucos estava a diminuir.
O campo de jogar à bola é tosco e improvisado: delimitado por estacas e ramos de árvores, com o piso tão irregular que quase era impossível prever para onde a bola ia. Dois grupos de miúdos corriam atrás da bola cujos ressaltos fazia-os falhar amiúde os seus pontapés.
Na escola estava-se na hora do recreio: salta-se à corda e canta-se em rodas, orquestrados pelos professores. À minha passagem, alguns miúdos param e gritam para mim: mzungu, mzungu!

Viajar pela África de etnia bantu, e particularmente no Uganda, é ouvir a toda a hora, quase até à exaustão, a palavra mzungu. 
Mzungu refere-se genericamente a todas as pessoas que viajam, que andam de um lado para o outro. Por tipicamente terem sido europeus de pele branca, os primeiros a viajar por África (meados século XVIII), esta palavra passou a designar quase exclusivamente pessoas brancas. Podendo ter, raramente tem uma carga pejorativa ou racista - se somos brancos, somos mzungu ou wazungu (plural). Tão simples quanto isto.

As casas são muito simples. Muitas ainda feitas de adobe, com canas a reforçarem as paredes trespassando os tijolos feitos de argila. Tábuas toscas estão precariamente empilhadas e encostadas entre si, formando portas improvisadas e frágeis.
Várias já estão construídas com cimento, outras estão parcialmente forradas por uma camada dele.
Cabeças assomam às janelas e às portas quando passamos. As crianças estão indecisas sobre o que fazer: tanto vêm ter comigo inundadas de curiosidade, segurando as minhas mãos e olhando atentamente para o meu rosto, tocando-o ao de leve, como hesitantemente param a alguns metros de mim. Muitas estão nuas e descalças.





Reparo em duas senhoras que se encontram meio escondidas do caminho que percorro pela esquina de uma casa mal acabada. Elas descascam e cortam alguns vegetais, à sua frente secam tubérculos que não consegui identificar.
Estão encostadas a uma parede meio desfeita e sentadas num banco de madeira que mal as suporta. Peço ao Simon para esperar um pouco. Se me deixassem queria fotografa-las.
Precisei de alguns minutos conversa para as convencer a tirar uma fotografia. Apenas uma deixou. Estava vestida de rosa, calçava um par de galochas pretas e tinha um cesto de vime aos pés. Quando a sua companheira de trabalho percebeu que a amiga tinha gostado da fotografia, é que permitiu que lhe tirasse igualmente uma imagem de si e a seguir uma em que aparecessem as duas ao mesmo tempo.
Retorqui de imediato - "Claro que sim!"
Elas foram um daqueles pequenos quadros, que nos tours guiados num museu usualmente são ignorados.

Tive que dar uma corrida para apanhar Simon. Este estava claramente impaciente e tinha resolvido continuar a andar em frente.




Vamos agora para um canto mais afastado do centro da aldeia: uma casa simples, com uma serapilheira estendida no chão com grãos de café espalhados por ela. Quatro crianças estavam sentadas debaixo de uma árvore quando chegámos.
O café pertence a um casal que vende os grãos a uma corporativa. A mulher, envergonhada, não saiu de dentro de casa apesar de a porta estar aberta e o marido preferiu não falar. É o guia que faz a descrição do que está a ser feito e como está a ser feito.
É de uma forma altiva que o homem posa para a fotografia. Reparo que seus olhos estão algo mortiços, vidrados e embaciados - talvez cataratas. Após um par de fotografias tiradas, o homem caminhou lentamente, em passo orgulhoso, para a porta de casa desaparecendo atrás da porta. Tal como a senhora do cesto de vime também ele tinha umas galochas pretas.
Apenas as crianças - talvez os filhos do casal - se mantinham cá fora a uma tímida distância, olhando para o mzungu com desconfiança.



Deixo a casa que seca o café e sou levado para outro quadro de Bigodi: o curandeiro.
Uma tabuleta quase ilegível, pendurada num tronco de uma árvore cravado no chão, anuncia dando as boas vindas: "Curandeiro tradicional, desde 1950 até agora. Benvindo. "
Sentado nos seus calcanhares, de rosto sereno e olhos castanhos claro, ele fala de uma forma pausada para nós. Estendido à sua frente tem uma mistura caótica de garrafas plásticas de diversos tamanhos com líquidos de várias cores e texturas, raminhos, frutas e folhas. Aponta a cada uma delas e num tom de voz neutro vai desfiando os poderes de cada um deles:
"Dores nos joelhos, cotovelos, pescoço, bom para feridas, dores de cabeça e baixar febre. Ali é contra a inveja, afastar maus olhados, atrair a mulher ou o homem desejado, aumentar a libido ou se necessário num acto de vingança...retirá-la."

Mostra como se macera as folhas, os frutos, como estas se adicionam aos líquidos que repousam em cabaças que por sua vez são vertidos em frascos e garrafas de plástico. Debita as suas receitas como se estivesse a apresentá-las numa bancada de cozinha num programa de televisão - um pouco disto, umas folhas daquilo, fervem, depois adicionam ervas desta cor e daquela e a seguir mexem.
Passa uma mulher com um vestido vermelho flamejante e um bonito turbante amarelo, que o interrompe e lhe dirige umas breves palavras. O curandeiro estende-lhe uma poção já preparada de um laranja duvidoso, que a senhora mete dentro de um saco plástico preto.




No caminho de volta para o barracão, Simon aponta para o Centro de Saúde.
- " Vêem aquela casa branca?? É o Centro de Saúde. Existe há poucos anos. Há médicos, vacinas, antibióticos, pode-se fazer curativos e até existe raios X, mas as pessoas ainda preferem ir ao curandeiro que ao centro de saúde.
- "Só vão lá quando o curandeiro, que conhecem há muitos anos, falha ou demora muito tempo a resolver o problema que as afecta. Há muita desconfiança na medicina moderna."
Conclui, com uma voz que soou a esperança:
- "Aos poucos e poucos eles estão a ir ao centro. Temos de lhes dar tempo para ganharem confiança no que não conhecem bem. Afinal, há séculos que vamos aos curandeiros."

Os putos que tinham estado a brincar comigo pouco antes de Simon aparecer estavam de volta: fazem-me mais caretas em troca de mais uns minutos de brincadeira. Alinho de novo com eles. São super divertidos.





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