Moynaq, Uzbequistão - Aral, um mar que já não é



Da capital uzbeque, Tashkent, até Nukus, é um voo interno que dura cerca de hora e meia.
O voo parte às 07.00 da manhã. Embarco a tempo de ver o sol a despontar na pista. Estão cerca de 12º. Temperatura está agradável o suficiente para vestir confortavelmente uma t-shirt.
Nesta hora e meia, tudo muda radicalmente: dia torna-se cinzento, chuvoso, muito vento e com temperaturas negativas. É um impermeável corta-vento, que invariavelmente trago na minha mochila que me resolve o problema.

Situada na república autónoma do Caracalpaquistão, Nukus, a sua capital, é uma introdução, um espelho do destino que me fez parar por uns minutos aqui: Moynaq.
É cinzenta, praticamente vazia, quase abandonada e muito monótona. Uma carrinha de fabrico russo e pintada com um verde-garrafa maltratado, dá um cansado toque de cor naquilo que me rodeia. 

São três horas de viagem até a Moynaq. A sua chegada é anunciada por um solitário sinal: um triângulo invertido emoldurado com uma moldura de alumínio cinzento. No topo, tem o nome da cidade e no meio, um desenho de um peixe a saltar fora de água sob um fundo azul de forma circular.


Moynaq é uma antiga cidade pesqueira da antiga União Soviética. Tem um ar de abandono que roça o delicioso. O dia está muito frio, muito vento e o cinzento impera. Como Nukus, não tem praticamente sinais de cor. Tudo é cinzento ou de um branco que quase não é.
Só uns gradeamentos azuis que circundam um jardim mal amanhado, dão um solitário e discreto toque de cor ao ambiente que me rodeia.
Raras são as pessoas que andam nas ruas. Alguns animais percorrem-nas lentamente, aparentemente sem destino como se tivessem sido deixados ao acaso. Os carros parecem hesitar em circular nelas. As casas estão decadentes, as janelas deterioradas e as portas estão picadas por verões e invernos extremados. O vento sopra fazendo levantar nuvens de poeira que rasam o chão.
Ao lado uns dos outros, dois cães e um bode protegem-se dele, colocando-se atrás de uma casa que dificilmente será concluída.
Tudo à minha volta confirma a sensação que estou numa cidade que parece ser fantasma.


E é. Se recuarmos no tempo pouco mais de sessenta anos, Moynaq prosperava. A sua população estava bem acima dos cinquenta mil habitantes e a indústria pesqueira tornava esta cidade apetecível e florescente. Hoje, o peixe desapareceu e a abundância é uma miragem. A sua população conta-se por um par de milhares de habitantes empobrecidos e desempregados com um futuro tão cinzento e inóspito quanto a sua cidade.
A poucos quilómetros desta cidade localiza-se o seu porto pesqueiro. É aqui que se percebe o que aconteceu a Moynaq.

Quase uma dezena de barcos estão alinhados, uns ao lado dos outros. Seria uma cena normal, vulgar, se estivessem fundeados e a flutuar na água, mas não. Estão totalmente abandonados, fortemente comidos pela ferrugem, pousados na areia e a água está afastada deles quase cento e cinquenta quilómetros. Representam a consequência de um maiores desastres ambientais que o Homem jamais causou ao seu planeta. Por tristes motivos, a sua história é bem conhecida.

Na década de 50 do século passado, o porto de Moynaq via o Mar Aral em toda a sua grandiosidade: era o quarto maior lago do mundo e muito rico em peixe. A indústria pesqueira trazia consigo estaleiros navais, conserveiras, fábricas de processamento de peixe. Emprego não faltava.
Com 68 mil quilómetros quadrados de área e alimentado por dois rios - a sul, o Amu Darya e a norte, o Syr Darya - ambos nascendo na cordilheira dos Himalaias, o lago cruzava as fronteiras do que agora são três países: o Uzbequistão, Cazaquistão e o Turquemenistão.

É nesta altura que o governo soviético, liderado por Khrouchtchev, decidiu apostar forte no cultivo de algodão. O algodoeiro, um arbusto de grande porte que pode ultrapassar os quatro metros de altura, necessita de calor para florescer. Esta região, a Ásia Central, tem as condições climatéricas necessárias para o seu crescimento. Mas tem também um grande contra: sendo uma região semi-desértica, a escassez de água é um problema que tem que ser resolvido. A solução encontrada para o regadio, foi drenar não só o lago mas também desviar a água dos dois rios que nele desaguam para as plantações através de barragens e condutas.
O resultado foi a tremenda redução - actualmente cerca de 90% - dos níveis de água no Mar Aral, ao ponto de hoje em dia este estar praticamente seco no Uzbequistão e restar dois lagos, quase vestigiais, no lado cazaque e turquemeno.
Poluído pelas várias industrias, contaminado pela extensa utilização de fertilizantes e pesticidas nas plantações de algodão, com o volume de água a diminuir muito rapidamente, o aumento da concentração de toxinas e teores salinidade atingiu um tal ponto que o lago deixou de poder sustentar o peixe e este foi morrendo ao ponto de desaparecer. Com ele, desapareceu a indústria, o emprego e a prosperidade.

O desaparecimento do quarto maior lago do mundo trouxe outras consequências nefastas para a população: devido à poluição, a bronquite, asma, cancro e mortalidade infantil têm altas taxas de incidência nesta área. A somar a estes problemas, existem significativas alterações climáticas locais. Sem o enorme lençol de água a moderar o clima, os verões e invernos tornaram-se mais longos, mais intensos, com elevadas temperaturas no primeiro e muito baixas no segundo. A aridez aumentou e as tempestades de areia não são raras.





É por um leito arenoso de cor creme, pisando algumas conchas e pontuado com arbustos e tufos de erva desesperadamente secos, que caminho por entre estas carcaças. O meu corpo e dedos estão entorpecidos e sem sensibilidade pelo frio que se fazia sentir.
Subo aos barcos cuidadosamente, num receio que as chapas, agora muito finas e frágeis, não suportem o meu peso. As proas bizarramente apontam para um horizonte de areia. Alguns estão esventrados e permitem espreitar as sua entranhas. Como o profeta Jonas no interior da baleia que o engoliu, entro neles. Há vigas, tubagens, escadas e escotilhas. Tudo ressequido e descascado pela intensa corrosão que os devora. Cá fora, os hélices estão fora de água, as popas apontam para o ar e os cascos, solidamente imóveis fazem ondular imaginárias pequenas ondas de areia.
Uma família pede-me que lhes tire uma fotografia, entro numa selfie com eles e ainda fazem questão que eu tire lhes tire outra com a minha câmara para que eu tenha uma recordação deles:
- Claro que sim.













O frio amainou um pouco. Os dedos recuperam alguma sensibilidade. Sinto picadas neles, sinal que a circulação começa a normalizar.
Subo dois a dois os degraus da escadaria que me levam de volta à carrinha. Tenho as mãos enterradas nos bolsos do polar para tentar aquecer os dedos enquanto abano a minha cabeça de um lado para o outro repleta de incompreensão e choque.
Os barcos lá em baixo, jazem imóveis e silenciosos. Ancorados permanentemente naquilo que o exuberante mar Aral se transformou: uma árida e extensa planície de areia poluída e contaminada. Um cenário surreal e, não muito longe da verdade, um cenário pós-apocalíptico.

Se o cemitério de comboios à entrada do salar de Uyuni resulta da lógica do fim de uma actividade industrial, este cemitério representa um desrespeito tremendo para com o nosso planeta. Uma consequência de um crime ambiental premeditado e doloso.
Não acredito de todo que em finais da década de cinquenta, inícios de sessenta, estas consequências não fossem previsíveis e conhecidas.

O céu cinzento adensou-se e a temperatura voltou a baixar. Minutos depois de termos recomeçado a jornada para Khiva, começou a nevar. A paisagem alegrava-se com o branco.
Um ligeiro manto de neve cobria o vidro da carrinha e o cinzento do alcatrão. Durante alguns segundos coloco a mão fora do vidro e vejo os cristais de neve a desvanecerem-se nela.







Comentários

  1. Um cenário apocalíptico. Tão dramático quanto a sua causa. Pelo menos, permitiu fotos inusitadas, melancólicas e poéticas. Parabéns!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Sim, é poético, surreal e bastante triste.
      Eles são uma elegia, uma ode à indiferença do ser humano perante o seu planeta.

      Eliminar
  2. Toda a envolvência é melancólica. O texto e as fotos captam magistralmente essa realidade.

    ResponderEliminar

Enviar um comentário