Mizdakhan, Uzbequistão - quando se parte cedo demais



As palavras e as conotações que lhes são dadas são curiosas. E dizem-nos bastante sobre as culturas que as usam. Cemitério é uma delas. 
Deriva da forma latina coemeterium, que significa dormitório, um lugar onde se dorme. Um lugar de repouso e de descanso. Culturalmente, o ocidente, muito por influência cristã - os mortos não estão mortos, antes foram acolhidos por Deus - suaviza e adorna a morte, associando ao lugar onde os mortos são enterrados a palavra cemitério. 
Deste ponto de vista, há uma palavra muito mais honesta e logo mais crua também: Necrópole - a cidade dos mortos. Mizdakhan, para um ocidental seria um cemitério, mas aqui é uma necrópole, uma enorme cidade dos mortos. 

Cerca de vinte quilómetros depois da mini-van ter partido do Nukus, a caminho de Moynaq, alguém avistou da estrada, uma colina forrada por gradeamentos que delimitavam áreas contiguas:
- "Estranho... parece ser um cemitério.

No regresso, já a caminho de Khiva, o condutor pára a mini-van junto a um portão. Abre a porta de trás, fazendo-a correr, para que saíssemos e com o braço aponta para entrada poeirenta, algo enlameada dizendo umas palavras que só dias mais tarde, ao pesquisar na internet, iria perceber o que significava:
- "Necrópole de Mizdakhan."
Saio da mini-van a pensar em duas coisas que induzem em mim estados mentais quase opostos: os meus dedos vão gelar de novo, o que me desagrada bastante e pela segunda vez vou visitar um cemitério, o que me agrada de sobremaneira. Se o primeiro era de barcos, este é de seres humanos.

Mesmo à entrada, no lado esquerdo, um placard uzbeque em más condições identifica os principais túmulos da necrópole.


A morte é enterrada aqui há milénios. As primeiras evidências de cerimoniais fúnebres datam do século IV antes de Cristo. Começou por ser zorostra, a religião fundada pelo profeta Zaratustra no século VII aC na antiga Pérsia, actualmente Irão. E manteve-se até ao século VIII dC.
Entre os anos 720 -750, os árabes entram definitivamente na Ásia Central e com eles, o Islão. A morte muda de religião. Os rituais fúnebres zoroastras cessam quase completamente no século IX.
Na necrópole de Mizdakahn ainda hoje se testemunha, ainda hoje se entrelaçam as duas mortes: a zoroastra e a muçulmana.

É sobre o lençol árido e enrugado da colina onde me encontro que a necrópole se desenrola.
Desde a base até ao seu topo, é uma confusão tremenda de campas. São milhares. A disposição de umas relativamente a outras parece ser aleatória, sem um propósito de ordenamento, de uma lógica passível de ser adivinhada ou entendida.




Apesar de encimadas por crescentes, em várias campas existem buracos a céu aberto. Pelos preceitos da agora meramente residual tradição zoroastra, serão os pássaros necrófagos que farão a limpeza dos corpos.

As sepulturas estão delimitadas por simples gradeamentos metálicos, tijolos assentes uns sobre os outros e muros de terracota esboroada pelo tempo, numa mistura incoerente de trabalhos de serralharia e de pedreiro. O metal está pintado de branco, azul, preto ou apenas com a cor crua do ferro. Há retratos pintados em chapas metálicas negras, outros gravados em pedra mármore.
Para além do caminho principal, que está pavimentado, não há caminhos óbvios que nos conduzam de um lado para o outro. Por vezes circular entre os túmulos é como caminhar entre as pessoas que entram e saem numa estação de metro: andar de lado, ziguezaguear e encolher a barriga.

Na esmagadora maioria das campas, os buracos abertos no solo estão descobertos. Sobre eles foram colocados escadotes de madeira. Têm duas funções opostas: a pragmática de carregar o corpo e a espiritual para ajudar a alma a passar para o outro mundo.
Flores de plástico, junto aos retratos ou presas num canto dos escadotes, rompem pontualmente a face espartana da colina.






Em 1915, Alberto Caeiro, nos Poemas Inconjuntos escrevia:

Se, depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,
Não há nada mais simples.
Tem só duas datas - a da minha nascença e a da minha morte.
Entre uma e outra coisa todos os dias são meus.



Cirando pelos túmulos e vou espreitando as tabuletas que reduzem a história da vida de um homem às duas datas mais importantes dela: nascimento e morte.
Nelas há histórias que se contam de uma forma longa, outras há que se relatam em poucos anos.
Vejo gente que partiu com 40; 50; 70 e até 90 anos, mas encontro uma cuja história é absurdamente breve. Entristeço subitamente e uma onda de choque percorre-me: pais que perderam o seu filho. Um bebé.
Numa sepultura com gradeamento pintado num branco castigado e marcado pela ferrugem, a tabuleta diz quanto tempo o tiveram consigo: 11.06. 2013 - 08.11.2013. Cinco meses. Demasiado curta para chegar a ser uma introdução à vida. Uma história contada ao contrário: não tem início, só fim.
Estes poucos metros da sepultura quadrados estão inundados de uma dor que não cabe dentro de um coração, de um peito, que não cabe dentro de nada.




Quedo-me nela por uns minutos. Dedico a este nome que não consigo decifrar, duas orações ocidentais a dois deuses distintos da minha cultura religiosa: Uhura Mazda, o Deus zoroastra do bem e outra a Alá.
Mas o meu maior pensamento vai para quem ficou. Eduardo Lourenço escreveu que a morte mais concreta, a única que existe, mais do que a nossa, é a dos outros.

Na história das vidas fugazes, não há apenas uma pessoa que morre. Quem a amou também morre parcialmente. Uma parte que não pode ser reclamada ou recuperada. É redutor e pouco sensato pensar que a dor está circunscrita a estas datas. É bastante mais extensa que isso. Reside em nós, em todos os dias que serão vividos, depois do fim dessa vida cujo direito ao futuro foi cortado cerce. É para sempre. Tudo fica murcho, tudo fica desbotado. A incredulidade do que aconteceu torna-se rotina.
As expectativas de futuro, as projecções do longo prazo, ficam completamente desintegradas.
A ausência de resposta - como se tivesse que haver uma! - ao "Porquê a mim? Porquê a nós? E o pior de todos os porquês possíveis: Porquê a ele??" tem que ser aceite com uma resignação corajosa e sábia.


Continuo meditativo, parado no tempo, em frente a esta tabuleta cruel. Como uma torrente de lágrimas, silenciosas perguntas sucedem-se em catadupa dentro de mim:
- Terão os pais encontrado conforto em Alá? Será Ele suficientemente poderoso para explicar e confortar uma perda tão desmedida? Será mais eficaz, menos vazio e superficial que Cristo e a sua igreja?
- Terão os pais conseguido encontrar conforto um no outro? Será que as suas famílias deixaram que isso acontecesse? Terão elas percebido que as lágrimas, por vezes têm que ser solitárias e não forçadamente partilhadas numa companhia sufocante e inútil?
- Terão sobrevivido socialmente a tudo e todos, juntado forças e ainda hoje caminhem de mãos dadas?
Estatisticamente cerca de 75% dos casais separam-se após a morte de um filho.

Vou continuando a subir pelo caminho pavimentado espreitando datas, as cores e os materiais das sepulturas. No topo da colina mortuária desenrola-se uma paisagem vazia. Há túmulos em ruínas de séculos acumulados feitos de terracota atrás de mim. Alguns estão retratados no cartaz lá em baixo.
O céu está envolto numa pesada mortalha cinzenta e o vento fustiga o rosto. Fecho os olhos e sinto o ar frio e lavado a entrar pelas minhas narinas.
O condutor lá em baixo agita os braços para descer. O caminho até Khiva é longo e as estradas estão em mau estado.

Antes de descer, solto uma frase para o vento ouvir na necrópole de Mizdakhan:
- Eis um excelente dia para visitar a Morte.









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