La Paz, Bolívia - a Estrada da Morte

De manhã, à hora combinada, chegaram ao hotel. Vinham com ar descontraído, apesar de pretensamente quererem mostrar que era um assunto sério. Que de facto até era.

Tinham o típico o ar de jovens que gostam de mostrar que são radicais e as suas roupas não podiam espelhar melhor esse aspecto: o mais velho tinha uma bandana na cabeça, calças rasgadas, blusão de cabedal preto. Pendurado no pescoço tinha um colar de prata com uma discreta - mas brilhante - caveira. Os outros dois estavam quase iguais: blusões de cabedal, botas de motard que se adivinhavam por baixo das calças e dentro dos capacetes estavam luvas de protecção. Um não usava bandana, o outro tinha-a enrolada ao pescoço.
O mais velho pergunta-me em inglês se prefere que fale comigo em espanhol ou em inglês. “Como quiseres”, respondo-lhe. Prossegue em inglês e começa a explicar o que ele e os seus colegas estavam ali a fazer. Irei assinar um termo de responsabilidade e eles estão servir de testemunhas em como eu o fiz de livre vontade e consciente dos perigos do que me propunha a fazer com eles.

Começam por dizer que já existiram e continuam a existir acidentes e mortos naquela estrada. Avisam que podemo-nos cruzar com carros, encontrar deslizamento de terras, piso abatido, ter que passar por baixo de cascatas. Sem esquecer a ocorrência de nevoeiros densos e persistentes naquela área. 

Uma viatura equipada com maca e primeiros socorros estará presente em permanência porque "por vezes nas quedas de bicicleta partem-se pernas e pulsos".
Ir-me-ia ser dado um capacete integral, luvas, casaco e calças de cabedal, joelheiras, cotoveleiras. As bicicletas tinham dupla suspensão. Todo o equipamento iria estar em condições e com tamanhos adequados para mim. Meios para resolver problemas mecânicos que surgissem ao longo do percurso estava igualmente disponíveis.

Confirmei que tinha percebido tudo e estava informado do que poderia acontecer. Assinei o termo de responsabilidade e a seguir assinaram as testemunhas.
Estava feito. No dia a seguir ia descer a infame Estrada da Morte de bicicleta. Essa noite foi mais comprida que o normal.



São 64 km que começam em La Cumbre (4700m de altitude), a uma hora de condução de La Paz, e vão até Coroico, a 1200m de altitude.
O seu nome real é bem mais inofensivo que a alcunha que ganhou ao longo dos anos - Yungas Road.
Construída pelos prisioneiros de guerra paraguaios da Chaco War na década de 30 do século passado, a Yungas Road é uma linha de estrada não pavimentada rasgada no flanco dos Andes. Muito estreita  com curvas fechadas e abruptas. Abismo vertical (quedas de quinhentos a novecentos metros) de um lado e face rochosa, áspera da montanha do outro. Deslizamentos de terras não são raros e o piso está molhado e escorregadio por cascatas e escorrências de águas que a interrompem, tornaram-na mortífera. Milhares de mortes ocorreram nesta estrada. Estima-se que só na década de 80 terão ocorrido em média duzentas a trezentas mortes por ano o que lhe valeu os tristes e famosos cognomes de Estrada da Morte e Estrada Mais Perigosa do Mundo.
Os locais dizem que as mortes são as vinganças dos inúmeros prisioneiros paraguaios que morreram a construí-la. 

Só em 2006, e após vinte anos de construção, fica aberta ao público a North Yungas Road, a nova estrada alcatroada que irá tirar a esmagadora maioria do trânsito que circulava na Estrada da Morte.
Por incrível que pareça, apesar de pouco frequentemente, a Estrada da Morte ainda hoje é utilizada por gente que não está disposta a percorrer os quilómetros extra que a nova Youngas Road obriga a fazer.
Agora quem arrisca o pescoço nela é pessoal como eu que não perder a oportunidade de percorrer uma das estradas mais famosos do mundo de bicicleta mesmo tendo para isso de assinar um termo de responsabilidade.


A primeira secção

Em La Cumbre, a mais ou menos a uma hora de condução de La Paz, dão-me a bicicleta e todo o equipamento prometido. O grupo é constituído por ingleses, australianos, canadianos e dois espanhóis. Até à entrada da velha estrada percorreremos a nova e bem alcatroada Yungas Road. O guia frisa que façamos tudo ao nosso ritmo, qualquer que ele seja. Ele vai à frente e outro guia fechará o grupo indo atrás do último. As carrinhas de apoio irão, por sua vez atrás dele.
Partimos. Definitivamente o guia não vai em ritmo de passeio. Sigo atrás dele e tenho bem presente que desde essa altura até aos momentos que paramos para que todos se reagrupem ouço claramente o vento a sibilar no meu capacete.

Desço quase deitado na bicicleta. Não preciso de pedalar. Passo por camiões e carros. Ultrapasso-os facilmente. Não sei qual a velocidade de descida mas é certamente alta. Muito alta. Por vezes há um desejo intenso que não venha ninguém em sentido contrário. Tenho a noção que estou a arriscar. Mas continuo atrás dele. Em cada paragem sinto a adrenalina a correr intensamente. Um dos espanhóis cai e está dentro da carrinha. Foi só um susto mas não quis voltar para cima da bicicleta. Por um par de vezes deparamos com túneis. Não podemos passar por eles, tem de ser ao lado dele em trilhos mal rasgados. Retoma-se a estrada e logo a seguir a adrenalina. As curvas sucedem-se, há poucas rectas a esta altitude. A estrada segue o contorno das montanhas. Descer é a palavra de ordem.
A esta velocidade mal reparo nos vales com lamas a pastarem, nas montanhas verdejantes de cumes encimados com neve, no azul intenso e límpido do céu, na pureza do branco das nuvens, do ar lavado que me rodeia e me arrefece os pulmões.


É agora!

Tinha o pé esquerdo no topo do pedal da bicicleta e o direito no chão. Quando pousasse o direito no outro pedal e o empurrasse para baixo estaria a pedalar na estrada mais perigosa.
Fi-lo e desta vez para além da adrenalina, sentia também apreensão e nervosismo. Em doses iguais.

Tinha decidido que ia fazer o percurso “solto”, sem grandes reservas. Iria seguir o guia da mesma forma que tinha feito a secção anterior, no ritmo dele. E voltou a partir rápido.
Contavam-se às dezenas, se não bem mais, a quantidade de vezes que tinha descido esta estrada. Ir atrás dele implicava que iria pedalar quase todo o percurso para manter a sua velocidade.
Estava receoso que a bike saltasse ou derrapasse numa curva fechada e me fizesse mergulhar no vazio ou, na melhor das hipóteses, derrapasse naquele piso de mistura de gravilha com rocha solta e me rasgasse todo. Mas sentia-a estável, bem presa ao chão. Segura e precisa.
Agora em vez do vento a zunir no capacete, tinha agora o ruído da gravilha, das pedras solta, a serem afastadas, a saltar quando pisadas pelas rodas da minha bike.

Do meu lado esquerdo está o enorme abismo revestido do verde denso da floresta, com quedas de quinhentos a novecentos metros de altura; do lado direito a face rasgada na rocha da montanha.
Uma tabuleta amarela - bem no início - diz que se deve conduzir, ao contrário do resto do país, pela esquerda. Precisamente o lado abismo. O motivo é simples: quando se conduz pela esquerda permite ao condutor avaliar com maior precisão a distância entre as rodas do seu carro e o limite da estrada. 

Continuamos os dois a dar gás pela estrada fora. Começo a passar pelos obstáculos que tinha sido informado no dia anterior no hotel.
Desviamo-nos de raízes de árvores e de alguns ramos, passamos por algumas rochas caídas de tamanho e peso bem razoável. Um carro não teria passado por elas.
Fico encharcado por uma cascata de água. Apesar de, anteriormente, ter sido salpicado por outras, esta castigou mais. A água tinha aberto um buraco na estrada e senti o impacto dele nos meus braços quando passei bem pelo meio dele.
Um deslizamento de terras. Foi poucos minutos antes de passarmos. Uma corrente de lama ainda corria pela encosta quando chegámos. A estrada estava completamente interrompida. Se tivesse ocorrido no momento da nossa passagem, teríamos sido arrastados para o nada. Sorte! Foi por pouco. Passámos por ela com as bicicletas às costas e retomámos o ritmo logo a seguir.
Por vezes, a densa vegetação oculta o vazio e dá uma sensação de segurança que é bem vinda apesar de saber que não é bem assim. A estrada tem secções mais largas e outras, raras, com guardas que também faz aumentar a confiança nela mas é sempre sol de pouca dura. Apenas uma dezena de metros de cada vez.

No entanto a Estrada da Morte faz questão de nos lembrar que porque é conhecida pelo seu nome. Cruzes e memoriais aos que nela perderam a vida estão à vista de todos. Um, recorda o pior acidente que ocorreu nesta estrada. Em 1983 um autocarro com cem passageiros cai no vazio arrastando consigo as vidas de todos os que iam lá dentro.
O guia tinha dito que por baixo de toda aquela vegetação havia centenas de carros, autocarros e motas caídas. "Sim, bicicletas também."


A última parte do percurso é uma ligeira subida feita também em ritmo rápido. Acabo ofegante e, por dentro das calças e casaco que me tinham sido dados, eu fervia. De manhã estavam vários graus negativos. Agora estavam mais de três dezenas de graus positivos. É uma enorme diferença na altitude, três mil e quinhentos metros descidos, e com ela vem enormes diferenças de temperatura.

Meto a minha bike na carrinha de apoio e dirijo-lhe um agradecimento especial: “Obrigado bike, obrigado suspensão dupla”.
Ainda em La Cumbre, aquando da distribuição do material e antes começarmos a descida, cada um de nós borrifou com álcool a respectiva bicicleta, o chão e depois bebeu um trago. É tradição fazer esta oferenda à Deusa Mãe, Pachamama. Portanto, o meu último e sentido agradecimento vai para a Deusa.


Perguntam-me frequentemente se é de facto tão perigoso quanto parece. É e não é. Depende da velocidade que se quiser imprimir, do quanto se está disposto a arriscar. A largura da estrada apesar de estreita para dois carros passarem lado a lado, consegue ser razoavelmente confortável para uma bicicleta.
Intimamente, senti-me satisfeito e até aliviado por ter acabado incólume, sem quedas ou sobressaltos. Desde o início que a minha intenção era viver intensamente o percurso, a sua adrenalina, assumir alguns riscos, sentir a estrada a correr veloz por entre as rodas da bicicleta.
Mesmo assim, senti mais adrenalina, que estava a arriscar mais o meu pescoço na forma como desci a secção pavimentada desde la Cumbre do que a Estrada da Morte propriamente dita.



Comentários

  1. UAU... 😲

    Que Aventura fantástica! 😊 😊 😊

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    1. Foi mesmo. Adorei a experiência. Uma das coisas mais fixes que fiz em viagem :)

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  2. E qual foi a viagem (ou a experiência durante uma viagem) mais emocionante e inesquecível para ti ?

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    1. Entre outros, os glaciares no topo do Kilimanjaro, o Delta do Okavango de avioneta, atravessar o Vallée Blanche nos Alpes franceses, a Cratera Ngorongoro e o Transsiberiano :)

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  3. Que as tuas aventuras e viagens se multipliquem ainda por muitas mais e mais extraordinárias! 😊 😊 😊

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