Da estrada Militar da Geórgia vê-se o Monumento à Amizade entre a Geórgia e a Rússia.
Um ligeiro desvio e a carrinha pára no pequeno parque de estacionamento.
Cai uma ligeira chuva e o nevoeiro empresta ao ambiente uma aura de mistério sem que, no entanto, barre excessivamente a paisagem de eleição à minha volta. Molha suavemente o pavimento do monumento que reflecte de uma forma difusa e melancolicamente tudo à sua volta.
Impressiona. Uma circunferência quase completa em estilo soviético, algo monolítico. Assenta em vários arcos, cada um com a sua varanda, que lhe conferem uma certa leveza e delicadeza. Ainda assim, brutalista com linhas simples, decorado com enormes mosaicos, cujas cores dividem o gigantesco painel em dois segmentos ou, se preferirmos, três. Do lado esquerdo representa a Geórgia, do lado direito a Rússia e no centro, de cores mais escuras, está representada a união das duas repúblicas soviéticas. Uma mãe com o seu filho é a figura dominante.
É nesta parte central, a união, que as coisas azedam e tornam-se irónicas. A dita união foi uma falácia.
A história explica porquê e são necessários mais de dois séculos para o fazer.
O Monumento foi construído em 1983. Nesse ano celebravam-se os duzentos anos da assinatura do chamado Tratado de Georgievsk, de 1783, entre a Geórgia e a Rússia. O Tratado abarcava vários pontos. O mais importante prometia a segurança e protecção da Geórgia por parte do império russo relativamente aos impérios persa e otomano que ameaçavam a existência da Geórgia. Um segundo ponto, igualmente importante, garantia a soberania da Geórgia.
O que aconteceu? No fundo, nada. Ou melhor, o oposto do que pretendia salvaguardar o Tratado.
Apenas dezasseis anos após a sua assinatura, o império Persa, em Setembro de1795, invadiu a Geórgia e deixou-a completamente devastada e militarmente fragilizada. A Rússia nada fez. O principal ponto de tratado foi ignorado.
Consequência da invasão persa, o império russo liderado pelo Czar Alexandre I, logo no primeiro ano século XIX, viu uma oportunidade nesta fragilidade e anexou uma parte da Geórgia. No final do mesmo século toda a Geórgia estava já anexada.
A parte do respeito pela soberania caía menos de duas décadas após a assinatura do Tratado de Georgievsk, reduzindo-o praticamente a cinzas.
Nesse mesmo ano, a Geórgia é anexada à URSS. A esperança renasce no ano 1991, ano em que tanto a Geórgia como outras repúblicas soviéticas se tornam definitivamente independentes, com direito, finalmente, a vontade própria.
O tempo avança e chegámos ao século XXI. Não melhora. Geórgia e Rússia envolvem-se no conflito de Agosto de 2008. Dura apenas cinco dias e no fim não corre bem para o país caucasiano.
Duas regiões separatistas e pro-russas, a Ossétia do Sul e a Abcásia são perdidas militarmente para a Rússia. Esta não perde tempo e, unilateralmente, declara a independência destas duas regiões.
Formalmente ainda são território georgiano mas a Geórgia não tinha e muito menos agora, qualquer tipo de controlo sobre eles.
Era nisto que pensava enquanto dobrava o pescoço para trás para admirar os azulejos deste enorme mural e me perguntava como é que este Monumento ainda existia. Como ainda não tinha sido mandado abaixo?
Parecia haver uma grande e evidente hipocrisia nele.
A resposta encontrei-a, nesse próprio dia, a pouco mais de 35 quilómetros a norte deste marco histórico, na pequena cidade Stepantsminda (antiga Kazbegi), quando perguntei num restaurante qual a razão de estar ainda de pé.A resposta foi pragmática mas também sensata. Por causa do turismo, pelo seu valor artístico, porque apesar de tudo representa uma parte da história da Geórgia e porque há, ainda, georgianos que não abdicando da sua nacionalidade conseguem ver a Rússia com simpatia.
Faz sentido.
Apesar da chuva, que entretanto tinha aumentado de intensidade, do vento que já se fazia sentir, e do nevoeiro que se suavizou tornando-se numa bela neblina, fico mais uns minutos no Monumento à Amizade Geórgia-Rússia. Deixo de admirar os azulejos e as suas cores vibrantes e dedico-me a admirar a paisagem.
Ignoro o monumento, as suas incoerências e a truculenta convivência entre os dois países.
Levanto o rosto e deixo que as gotas o salpiquem. Sorrio para elas e tento contá-las.
Foco-me na paisagem caucasiana à minha frente. Não há um raio de sol, a luz está uniformemente distribuída, nada de sombras, de contrastes abruptos. Observo a leveza introspectiva da neblina. Aconchegante, silenciosa, misteriosa. Neblina que abraça e suaviza as cristas montanhosas; sem esconder as suas arestas e seus contornos; as nuvens de diferentes cinzentos acima dela. O horizonte está encurtado, o que permite que os meus olhos estejam livres para os detalhes.
Vejo os verdes da vegetação rasteira, os pequenos arbustos e as rochas a brilharem ornamentadas com as pesadas gotas da chuva que deslizam sobre as suas superfícies. Tímidas flores silvestres, um curto trilho aberto na terra húmida e castanha, ele próprio um miradouro.
Inalo profundamente o ar puro, lavado e húmido desta atmosfera pacificadora. Sinto-o a percorrer o interior do meu corpo. Purificante.
A paisagem de montanha é inigualável. Pura poesia. Fantasia, até.
Deslizo a mão esquerda, e depois a direita, pelo corrimão molhado, unindo as inúmeras gotas de águas nele depositadas num único e fino fio de água. Tal como o vento, o corrimão está frio. Sacudo as mãos como se as tivesse acabado de lavar mas não encontrasse uma toalha para as secar. É altura de partir. Recuo de costas para o carro para ver uma última vez a paisagem esbatida, os mosaicos coloridos, a mãe com o seu filho, a longa curvatura do Monumento que me rodeia e abraça.
Tiro o gorro da cabeça e abano-o para afastar a água que o molhava e antes de entrar no carro ainda bato com a ponta das botas nas lajes de pedra que continuam a reflectir de uma forma difusa e melancólica tudo à sua volta.
Segundos depois voltava à Estrada Militar da Geórgia em direcção a Stepantsminda.
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