dez anos, algumas histórias - Serengeti, Tanzânia

Tanzânia, Novembro 2004


Meras presas

Tanzânia. Que saudades deste país!
As semanas que estive no meu segundo país da África Oriental, o primeiro foi o Quénia, foram absolutamente imparáveis, mágicas até.

Quase semana e meia no Parque Nacional do Kilimanjaro para escalar o tecto de África, o pico Uhuru, que culminaria com uma visão absolutamente majestosa dos glaciares do Kilimanjaro e depois mais uma semana e meia a percorrer os parques naturais Manyara, a bela Cratera Ngorongoro e as vastas planícies do Serengeti.
No Serengeti, acampamos duas noites. Ao contrário do que se possa pensar estes acampamentos são espaços abertos no parque, não são vedados. Os animais podem cruzar, e cruzam, os acampamentos.
Se de dia, é pouco provável que tal aconteça, à noite a situação pode-se inverter.

Na noite dia anterior, na aresta da Cratera de Ngorongoro, tinha ouvido distintamente sons de patas a raspar no chão, focinhos a farejar e rosnares. De manhã, o guia confirmou as nossas suspeitas de qual o animal tinha rondado o acampamento: hienas.

Agora, ele vincava com especial ênfase os cuidados a ter, o Serengeti é outro nível:
  • Lixo bem fechado e colocado nos contentores, nunca dentro das tendas.
  • Não comer dentro das tendas, apenas no local reservado para isso
  • Manter as tendas fechadas
  • Não ter nada fora das tendas - meias, botas, cantis, roupa estendida
  • Nunca sair fora dos limites do acampamento
  • Se à noite ouvirmos ruídos, não sair fora das tendas para vermos o que é
- E se à noite alguém tiver que ir à casa de banho?
O guia responde com um sorriso lacónico:
- Se tiverem que ir... vão. Mas sejam breves.


Tinha saído dias antes de Arusha com uma diarreia já bastante controlada mas que de vez em quando ainda dava sinais de vida. E nessa noite deu. E os leões também.
Nessa noite ouve-se um rugir.  Já o ouvia há vários minutos. É um som surdo, grave e rouco, abafado. É um som fascinante e hipnotizante. Prende a nossa atenção e ficamos extremamente alerta. Recorda-nos que somos frágeis, indefesos, que partilhamos da inquietação nervosa de uma gazela vulnerável quando vai beber água.
Ouve-se facilmente a longas distâncias mas não é fácil perceber se estão distantes ou não. Usualmente sim, mas nem sempre.
Estou indeciso: um arbusto mais próximo ou as casas de banho a cerca de dez metros das tendas?
O rugir multiplicou-se, são dois agora. Comunicam. Desço o zip da tenda e só com a cabeça fora procuro olhos que brilhem na escuridão e vultos na escuridão. Nenhum.
Saí da tenda quase desesperado, no último minuto, e com adrenalina a bater forte. Opto pela casa de banho e dou uma rápida corrida até lá.
Regresso à tenda, não sem antes ver o que se passa à volta dela e enfio-me no saco-cama tão depressa quanto a minha gazela foge quando descobre que tem um leão no seu encalço. A adrenalina e o coração bombam fortemente dentro de mim e rio-me nervosamente divertido com a minha situação.
Na manhã seguinte, ao pequeno almoço, descubro que houve quem tivesse passado pelo mesmo.

Mudamos a face do planeta, mas sem tecnologia somos iguais a qualquer gazela: meras presas.






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