Palmira (cidade das palmeiras), ganhou relevância comercial na Rota da Seda durante o período helenístico (séculos III-I a.C.) e floresceu sob o domínio romano (séculos I-III d.C.).
Foi integrada pela primeira vez no Império Romano no século I d.C., durante o reinado do Imperador Tibério. No entanto, é num muito curto período de tempo, cerca de dois a três anos do Séc. III, situados nos anos 270 que se dá ascensão e queda da grande cidade.
Uma mulher domina a história de Palmira. Esteve sob as suas ordens entre 267 a 272 d.C. Zenóbia - soa a nome de filme de ficção científica - ascende ao poder após a morte do seu marido, o Rei Odenato, e Palmira viu alargar enormemente a sua área de influência.
Desafiou o domínio romano. Tornou a cidade independente de Roma e através de várias conquistas militares, alargou a sua influência a todo o Médio Oriente. Para além da Síria, o seu império chegou ao Egipto, Jordânia, Palestina, Líbano e Turquia.
Incomodado com as suas conquistas e decidido a retomar o controlo da cidade e a sua reintegração no Império Romano, o imperador Aureliano entra, em 272, em guerra com Zenóbia. Esta perde a guerra. O imperador decide castigar a audácia da rainha e no ano seguinte, em 273, a cidade é saqueada, destruída e incendiada. E a sua influência e relevância desaparecem.
O pequeno bus que me levou até cá imobiliza-se. Cerca de duas horas desde que saímos de Homs. A guia vira-se para o grupo heterogéneo de cerca de dez pessoas e anuncia: chegámos.
Quando desço o último degrau, piso o solo de uma das cidades mais improváveis de um dia visitar. Caminho pelo recinto, caminho pelo tempo. Como usualmente, lentamente, com uma mão no bolso enquanto outra segura, quase descuidadamente, a câmara fotográfica.
Aprecio profundamente estes primeiros minutos da minha presença neste local improvável.
Dou pequenos pontapés nas areias do deserto como que as acordando do torpor dos tempos acumulados.
O amarelo desmaiado está presente para onde quer que me vire. O céu, indeciso entre o azul e o cinzento.
A guia leva-me a um túmulo subterrâneo, o hipogeu, em forma de T, dos Três Irmãos (Male, Saadi and Naamain). Construído pelos três irmãos para si e para as suas famílias, este túmulo data de meados do século II d.C.
A surpresa é imediata mas rapidamente deixa de o ser. Os túmulos estão barricados. Enormes sacos de areia estão colocados; uns à esquerda, outros à direita, ao longo da pequena escadaria de acesso aos túmulos. Para as descer tem de se fazer um ziguezague. Nas escadas e na área próxima da entrada, há cartuxos de balas, e até restos de armas.
Sinais demasiado visíveis da ocupação e da enorme destruição que foi imposta por todo o recinto, por parte do Daesh.
O interior do vestíbulo é apertado, estreito e escuro como breu. A lanterna do telemóvel mal rompe a escuridão. O tecto é abobadado e há imenso pó.
Sinais demasiado visíveis da ocupação e da enorme destruição que foi imposta por todo o recinto, por parte do Daesh.
O interior do vestíbulo é apertado, estreito e escuro como breu. A lanterna do telemóvel mal rompe a escuridão. O tecto é abobadado e há imenso pó.
Reparo que há nichos com ossadas. Há outras câmeras, galerias e mais nichos para explorar. Alguns frescos sobreviveram à presença do Daesh. Muitos deles estão pintados de branco. Perdidos na ganância da destruição cultural, da identidade síria e de um fundamentalismo religioso tenebroso.
Não demoro muito tempo. A presença da barricada dos sacos de areia perturbam-me mais que quaisquer ossadas que possa encontrar.
Mais que a história, sinto a destruição, a morte e os combates recentes. Sou capaz de ouvir os disparos, os gritos, a agitação de quem combate.
Mais que a história, sinto a destruição, a morte e os combates recentes. Sou capaz de ouvir os disparos, os gritos, a agitação de quem combate.
Foi em Maio de 2015 foi a primeira vez que o Daesh entrou na cidade. Manteve-se até Março de 2016 altura que as forças sírias recuperaram Palmira. Em Dezembro desse mesmo ano, o grupo terrorista recupera a cidade para finalmente em Março 2017 ter sido expulso de vez pelas forças sírias.
Neste período de tempo, o património foi destruído, vandalizado e vendido para financiar as actividades da organização.
A tomada de Palmira pelo Daesh pode ter sido apenas pelo último motivo: financiamento. Manter o complexo como "refém" para obter pagamento pelo sua libertação. E foram impiedosos. O director do complexo, Khaled al Asaad, foi assassinado por recusar divulgar onde se encontravam os maiores tesouros e artefactos da cidade.
O facto é que, em cerca de dois anos, provocaram mais danos que vários milénios juntos.
Passamos pelos principais marcos da Templo de Bel, o Arco do Triunfo, a Avenida das Colunas, o Tetrapilon, o Teatro Romano, o Anfiteatro.
Há uma fusão de influências greco-romanas, árabes e persas na arte e arquitetura palmirense.
Agora, pouco ou nada sobra. Apenas o anfiteatro romano ainda conserva reminiscências da sua antiga imponência. Encerra em si um segredo macabro. Era aqui que o Daesh executava os seus prisioneiros.
Inúmeros arcos, colunas e pórticos estão caídos. Caminha-se entre blocos de pedra, repletos de história que evito pisar.
Em cada um destes pontos, a guia conta a sua história e mostra fotografias antes e depois da presença do Daesh. A diferença é sempre dolorosa.
De volta à van para fazer uma paragem onde tudo terá começado: a fonte de Afqa.
Secou em 1994. Secas e uso excessivo de água foram as principais causas. Nas duas ocupações do Daesh do complexo de Palmira, estes encarregaram-se de a destruir totalmente. Após a reconquista por parte das forças sírias e com a colaboração da Rússia, a fonte foi recuperada e a água voltou a correr e, com ela, a rega de palmeiras e oliveiras.
Há segmentos onde a água corre por túneis subterrâneos e por vezes vem à superfície para depois voltar a mergulhar na rocha. Era precisamente a um destes sítios que tinha sido levado.
No caminho de volta para Ohms, reflicto. Usualmente fico sempre a pensar, a imaginar, como estas cidades seriam nos seus tempos mais gloriosos, como seriam os seus aromas, as suas cores, os seus ruídos, os movimentos, hábitos e rotinas diárias.
Um dos motivos pelos quais gostei tanto de Khiva e de Petra foi precisamente a presença de tudo isto. Há um enorme sentimento de portal do tempo quando se cruza as muralhas da primeira ou chegamos ao fim do al Sik da segunda. O século XXI fica para trás e recuamos um par de milénios.
Em Palmira não senti esta transição abrupta no tempo, o isolamento histórico.
Em Palmira não senti esta transição abrupta no tempo, o isolamento histórico.
Faltou-lhe, faltou-me, aquele impacto de viagem, de isolamento, no tempo. Ou seja, no fundo, mantive-me sempre no século XXI. Creio que foi precisamente por se ter adicionado história à história. Quer se queira ou não, a presença do Daesh em Palmira trouxe uma mancha, um toque (infeliz e tremendamente destrutivo) de excessiva de modernidade (tinham passado menos de dez anos quando estive lá), de história contemporânea a esta cidade.
Mas não consigo desvalorizar o quanto foi importante ter pisado as areias do deserto Sírio, ter cirandado e ter visto o que sobra da cidade de Palmira.
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