Kashi, Índia - Março 2016
Assistir ao nascer do sol no Rio Ganges em Kashi é um privilégio. Melhor, um duplo privilégio.
E não é só pela sua beleza.
Quanto mais cedo, melhor. E de preferência num pequeno barco a remos. O adequado cúmplice do silêncio da manhã que ainda não tinha nascido.
O sol nasce do lado oposto às ghats de Kashi.
Se nos virarmos para Este, vemos o sol a nascer inundando tudo de uma neblina suave, ao mesmo tempo que se nos virarmos para Oeste, vemos as ghats a tingirem-se de cores douradas. A cidade está a levantar-se sonolenta e trôpega da noite.
A aurora solar forma-se no horizonte. O barqueiro, de nome Sharma, pára tal como alguns dos barcos. A minha atenção está literalmente virada para o sol. Com cuidado, viro-me para a minha esquerda. Há um ligeiro ondular do barco que mal noto. Tudo está lento. As cores tornam-se mais abertas, mais faiscantes. As águas vão reflectindo diligentemente as cores. O barqueiro retoma a marcha e eu volto a dividir a minha atenção entre as duas margens.
As pessoas descem os degraus para as suas pujas e banhos, os iogis vão surgindo junto ao rio para os seus exercícios e meditação. Aparecem os vendedores ambulantes e lava-se roupa nas águas do Ganges.
Vê-se a atmosfera azulada das fogueiras das ghats crematórias que nunca param. E é uma oportunidade única de se fotografar as cremações a partir do rio. É proibido fazê-lo nas ghats (Sharma parou aqui uns minutos).
Há quem se sente nas escadas para ver o nascer do sol e os barcos no rio, mais tardios nas horas, aumentam rapidamente de número com o mesmo objectivo que o meu (daí a importância de ir cedo).
Quando acaba o passeio sou eu que vou para as ghats.
O sol subiu e a neblina desvaneceu-se há muito. Ainda cheira a manhã. Alguém queima paus de incenso com eles encostados à testa com os olhos fechados. Uma puja.
Vacas aparecem no topo das ghats, o número de pessoas aumenta, os turistas chegam às escadas e a temperatura da manhã sobe rapidamente. A vida a ganhar ritmo.
Para além da beleza do nascer do sol numa cidade mítica e num rio sagrado para bem mais de mil milhões de pessoas, o que o torna verdadeiramente fascinante é a sua duplicidade, este duplo privilégio: em simultâneo, com um virar de cabeça, assistir ao nascer do sol e ao nascer de Kashi, a Cidade Luz em sânscrito.
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