Texturas de África (Botswana III) - a última noite no Delta


A última noite


Por leituras de relatos de outros viajantes sabia que os "polers" por vezes na última noite passada no Delta do Okavango dançam e cantam para os seus clientes.
Estava na expectativa do que iria acontecer na última noite. No penúltimo dia tinha assistido a alguns ensaios de coreografias num recanto mais ou menos discreto da pequena ilha onde estávamos, fazendo crescer as minhas esperanças.

Quando Cedric nessa noite se levantou com o rosto iluminado pelas chamas errantes da fogueira e anunciou que os polers nos iriam presentear com danças e cantares tradicionais, sorri para mim próprio. Afinal sempre era verdade.
Reconheci algumas das coreografias pelos tais ensaios assistidos furtivamente. Kabo (poler da minha canoa) e Matula eram os mais frenéticos nas coreografias fazendo jus à fama que os africanos têm o ritmo no corpo: movimentos rápidos, tribais, pés batidos no chão, braços para cima e para baixo com os cotovelos meio dobrados.
Cedric liderava as vozes masculinas e as mulheres assumiam o ritmo com palmas rápidas e cadenciadas.

No final, uma esperada surpresa. Nesses tais relatos de viajantes é mencionado igualmente que no final usualmente existe um pedido contrário. Ou seja, os nossos anfitriões pedem que cantemos e ou dancemos canções do nosso "mundo". É justo. A troca cultural é a melhor maneira possível de os povos se aproximarem e de se conhecerem.
Numa cacofonia de línguas e de vozes apareceram (tentativas de) canções provenientes da Holanda, Alemanha, Itália e Portugal. Mas seria David, o norte-americano do grupo que espantaria e literalmente silenciaria o grupo e até a noite com a sua voz.

David, um argumentista de séries de televisão e cinema, é um americano típico. Pensa que existem os EUA e depois o resto do mundo com o consequente desconhecimento do que passa fora desse "quintal", predisposição para o egocentrismo e para o "olhem como eu sou bom, porque já fiz isto e aquilo e aconteceu-me não sei o quê".
No entanto... sabia cantar. David tinha tido aulas de música e canto lírico alguns anos antes como actividade extra-curricular enquanto universitário e estava a desenterrar da memória algumas canções aprendidas na altura.
Após o gozo que foi a tentativa de os europeus mostrarem os valores das sua canções, David com o seu canto arrastado e tom algo melancólico da sua voz fez cerrar uma cortina de emoções sobre a noite.
O acompanhamento? O melhor possível! O silêncio da noite, o estalar da madeira em brasa na fogueira, o manto negro da noite e uma gaita de beiços lenta e rouca.

Foram modos de vida opostos e três continentes bem diferentes entre si que se uniram naquela noite pelo divertimento, pela música e pelas gargalhadas leves e descontraídas.
Se a Namíbia para mim tinha sido o país mais espectacular da minha viagem pela África Austral, o Botswana, quer pelos dias passados no Delta, quer por esta noite e o que ainda me iria oferecer nos dias seguintes, tornou-se para mim um dos países mais poéticos onde já estive.


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