Camboja, Tuol Sleng S-21 - a demência de Pol Pot (II)

Uma simples escola

A entrada da escola Tuol Svay Prey passa quase despercebida.
A rua que lhe dá acesso é estreita e movimentada. Pequenos autocarros e inúmeros tuk tuks estão parados à sua porta.
Percebe-se que o ambiente é pesado, bastante diferente do que se espera de uma escola, mesmo que abandonada.
Os pedintes e o seu assédio aos turistas é em maior número que nas restantes ruas de Phnom Penh.
As mutilações e deformações que mostram são igualmente maiores.
Após a compra do bilhete e franquear o portão da entrada murada, um grande placard faz a introdução a Tuol Sleng S-21.
Tuol Sleng em Khmer significa "colina das árvores venenosas" e S-21 é o código da prisão.

Poucos metros à sua esquerda, um conjunto de catorze túmulos brancos estão alinhados, colocados em duas filas. Um segundo placard faz igualmente a sua descrição. São as últimas catorze pessoas que morreram antes de os vietnamitas libertarem a prisão em inícios de 1979.
No enfiamento destes túmulos, encontra-se algo muito parecido com uma forca. 
Por baixo, duas grandes tinas em forma de vasos, talvez de barro.




A visita guiada às instalações é feita por Vuthy. Um guia simpático, humilde, com um óptimo inglês e excelente conhecimento da história recente cambojana, começa pelo primeiro grande placard da entrada.
A partir daqui, inicio uma impressionante e tenebrosa viagem à prisão de Tuol Sleng, antiga escola Tuol Svay Prey.


A prisão

Quatro meses depois da tomada de poder em Abril de 1975, por Pol Pot e dos seus Khmers Vermelhos, a escola secundária é ocupada e o seu nome alterado para Tuol Sleng.
Foram colocadas no perímetro dos edifícios, cercas de arame farpado electrificado.
As salas de aula foram modificadas. Acabaram com as carteiras, os quadros e cadeiras. Não há giz.
As janelas foram fechadas com barras de ferro e arame farpado para evitar fugas.
Umas salas, tornaram-se prisões.
Para tal, elas foram divididas em pequenas células de tijolo com cerca de 2 m de comprimento por 80 cm de largura. O tamanho de um homem.
No fundo destas células, um pequeno orifício no chão destinava-se a drenar a urina do prisioneiro.
Algumas, propositadamente ainda têm resíduos de sangue das feridas dos prisioneiros políticos que as ocupavam.




Outras, foram transformadas em salas de tortura.
Apenas uma cama com estrado de ferro, no centro da sala, com um barra de ferro com argolas para prender os pés, um recipiente igualmente de ferro para as fezes e outro de plástico para a urina.
Mas para o poder fazer, o prisioneiro tinha que pedir autorização primeiro ao guarda, sob pena de ser severamente castigado.
Indo inclusivamente ao extremo, de só poder mudar de posição enquanto tentavam dormir, com a sua autorização.
O castigo de desobediência era punido com chicotadas e choques eléctricos.




Na parede esquerda de cada um destas salas, uma fotografia mostra um prisioneiro morto, torturado na cama de ferro e na posição em que foi encontrado, no momento em que a prisão foi libertada.
Corpos que os Khmers Vermelhos deixaram para trás na sua fuga.


As torturas

À chegada a Tuol Sleng, os prisioneiros eram fotografados, despidos e as suas posses confiscadas.
Dois, três dias depois iniciavam o interrogatório.
O objectivo era sempre o mesmo, obter uma confissão, e o meio de a obter era igualmente único, a tortura.
Os métodos são inúmeros e variados. Espancamento, chicotadas, choques eléctricos, privação do sono, sufocação com sacos de plástico, simulação de afogamento, metais incandescentes enfiados na carne, cortes com facas.
Comer fezes e beber urina de outros prisioneiros era vulgar. Arrancar as unhas com alicates e despejar álcool nas feridas, normal. Nas mulheres, a violação era comum. Amputavam-se até, os seus seios e genitais.

A estrutura no exterior, no pátio, semelhante a uma forca, usada anteriormente pelos alunos para exercício físico, era agora um instrumento de tortura, servindo para pendurar os prisioneiros pelas mãos ou pés.




Quando pendurados pelas mãos, estas eram colocadas atrás das costas e o prisioneiro era subido e descido nesta posição várias vezes.
O resultado era o desarticulamento dos braços em relação às costas. Frequentemente desmaiavam. Eram reanimados ao serem mergulhados nas tinas que estavam cheias de água.
"Água imunda e fedorenta, utilizada para fertilizar pastos" esclarece Vuthy.
E acrescenta ainda, "As portas e janelas dos gabinetes dos oficiais khmer eram mantidas fechadas, devido aos gritos e gemidos que ecoavam das salas de tortura".



Máquina de morte

Tudo para obter uma confissão que justificasse a sua condição, pré-definida à chegada a Tuol Sleng: traidores ao regime.
Com as confissões, maioritariamente falsas e obtidas sob tortura, vinham moradas e nomes. Amigos, conhecidos, familiares e colegas de trabalho. Na próxima leva de prisioneiros a chegar a Tuol Sleng, estes estariam lá certamente. O processo repetia-se. Uma "máquina" de triturar corpos que não parava.

Mas esta máquina alimentou-se largamente dos próprios Khmers Vermelhos.
O regime de Pol Pot temendo revoluções, vinganças e golpes de estado internos, começou ele próprio uma caçada às bruxas - as famosas "purgas".
Rumores, suspeitas, desconfianças ou actos que pudessem ser entendidos como falta de lealdade ao regime foram o quanto baste para que vários oficiais, e alguns de alta patente, acabarem as suas vidas em Tuol Sleng.
Mesmo quem trabalhava lá não estava seguro. Falar com, e causar a morte de prisioneiros sem autorização de superiores, má preparação da documentação e redacção das confissões, manutenção de máquinas, revistas aos prisioneiros mal efectuadas, era o suficiente para passarem de funcionários a traidores ao regime.
No entanto e absurdamente a morte dos prisioneiros não era encorajada. Precisavam deles vivos para obter as insanas confissões.
Mas após esta obtida...

Estima-se que cerca 17 000 pessoas tenham morrido nesta prisão.
Entre os cambojanos, Tuol Sleng era conhecida como "o sítio onde as pessoas entram mas não saem"
Terão sobrevivido talvez 12 pessoas. Apenas porque tinham aptidões que os Khmers Vermelhos consideravam úteis: pintura, fotografia e reparação de máquinas.
As pinturas que ilustram os métodos de tortura que estão ao lado de cada um dos instrumentos usados, foram pintadas por um desses sobreviventes - Vann Nath.




Nos anos iniciais os corpos eram enterrados no próprio recinto da prisão, mas com o avolumar do número de mortes e de execuções, deixou de haver espaço disponível.
Os prisioneiros passaram a ser executados e enterrados em valas comuns, em centros de extermínio, vulgarmente conhecidos por "killing fields".
O maior e mais impressionante está localizado a cerca de 15 km de Phnom Penh em Choeung Ek.


Porquê ?!


Ao sair, pensativo, percorro com o olhar o pátio daquela ex-escola.
Um monge com vestes de um laranja escuro está sentado num banco em pleno pátio de relva verde. Talvez esteja a dedicar uma oração aos que sofreram naquele local.




Penso na desumanidade daquela prisão, naquilo que vi e ouvi.
Pergunto-me se a minha imaginação se aproximará do que terá acontecido dentro daquelas paredes.
Na dor, na crueldade, na atrocidades cometidas em nome de algo perverso que não se consegue explicar ou perceber.
O "porquê" é uma pergunta que fica sem resposta.


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