Camboja - Phnom Penh (III)


As origens de Phnom Penh

Quando subimos uma escadaria que nos leva ao topo de uma colina com 27m de altura e ao templo de Wat Phnom estamos literalmente a subir às origens da cidade de Phnom Penh.
A história (ou lenda) que está por detrás da criação da cidade remonta a 1372, altura em que uma senhora, de nome Penh, ao apanhar lenha nas margens do rio Mekong (ou Tonle Sap conforme as versões) encontrou um tronco de uma árvore onde descobriu no seu interior quatro estátuas de bronze de Buda.

Interpretando tal descoberta como um sinal divino, decidiu fazer uma pequena colina (phnom) e construir no topo dela, um templo (wat) onde pudesse colocar as estátuas que encontrou.




Ao longo dos anos e até aos dias de hoje sofreu bastantes alterações e o actual templo foi reconstruído em 1926.
Toda a área adjacente a esta colina ganhou o nome Phnom Penh e actualmente é uma cidade com cerca de milhão e meio de habitantes.

Para aliviar o karma de quem visita este templo, há quem venda pequenos pássaros para que estes possam ser libertados.
Ao lado da entrada no templo está uma stupa e um santuário dedicado à Sra Penh. Vale a pena perder algum tempo a olhar para ele. A Sra Penh é representada por um busto vestido com uma camisa cor púrpura. Por cima da sua cabeça, uma aura de luzes LEDs de várias cores. O seu rosto ostenta uns elegantes óculos e brincos.
Tem cabelo preto, um largo sorriso, um piercing na língua (sinais dos tempos) e vários colares pendurados no pescoço.
À sua volta, as oferendas proporcionam tudo aquilo que uma mulher deseja e precisa: dinheiro, uma carteira, um telemóvel, pó de arroz, batons e perfumes.




Wat Phnom e o seu jardim é um local bastante movimentado. Quer por locais para orações, quer por turistas que o visitam.
O jardim convida. Árvores frondosas, passarada diversa, pequenos santuários, um chafariz e com bancos utilizados para jogar, ou comer, ou apenas ver a vida passar. Cheio de vendedores ambulantes e de ocasião, vendendo água, refrigerantes e snacks ocidentais e cambojanos.

Os macacos dominam a área, fazem o que têm a fazer claramente indiferentes a quem lá passa.
Tal como Sam Bo, o velho elefante desenraizado do seu espaço natural, que em passadas suaves e bonacheironas passeia visitantes no seu dorso pelo jardim, certamente percorrido e repetido milhares e milhares de vezes.




Na orla do jardim, a bordejar a estrada, estão dezenas de tuk tuks, motas e alguns cyclos. À espera de serem chamados para um serviço, à espera do regresso dos seus clientes ou pura e simplesmente estão lá por estar, a observar.
Talvez à espera de algo que provavelmente não virá, talvez em oração ocasional e silenciosa, talvez à procura de uns minutos de protecção das sombras das árvores antes de se retornarem ao alcatrão quente e húmido.

Olho para o grande relógio colocado no jardim, no início das escadas de Wat Phnom e comparo com o meu. Sorrio. Está certo. São horas de partir. Suspiro, inalo uma intensa nuvem de incenso de um vendedor que cirandava por ali e também eu entro no alcatrão fervente para atar uma das pontas soltas que tinha deixado nos dias anteriores: o Palácio Real e o Silver Pagoda.


Palácio Real e o Silver Pagoda

O Palácio Real é um complexo de edifícios relativamente recente na história cambojana.
Foi erigido há pouco mais de um século, em 1866 e destinava a ser a residência do rei e sua família.
Durante o golpe de estado de Pol Pot e do regime dos Khmer Vermelhos o rei Sihanouk e a sua família foram mantidos presos no Palácio.
Apesar de já não ser usado como residência, ainda hoje é palco de cerimónias oficiais.
Dos vários edifícios, para além do Trono Real, destaca-se o "Silver Pagoda". É o mais sumptuoso de todos. E lá dentro é isso que se respira. Opulência. Não só de arte mas acima de tudo da riqueza. Deve o seu nome ao facto de o seu chão ser feito em "azulejos" de prata. Mais de cinco mil, com cada um deles a pesar pouco mais de um quilo.

No seu interior, escuro e atapetado, encontra-se uma grande colecção de bustos de Buda e relíquias.
Dois Budas disputam as nossas atenções: um em tamanho praticamente natural com cerca de 90kg de ouro com 2086 diamantes e um diamante de 25 quilates incrustado no peito, o outro impressiona igualmente mas não pelo seu tamanho, mas sim pelo material de que é feito: esmeralda.
É este Buda que de facto deu o nome a este pagode. Inicialmente não se chamava Silver Pagoda, mas sim Wat Preah Keo Morokat, que significa em khmer O Templo do Buda de Esmeralda.
É aqui que o rei se desloca para ouvir sermões dos monges e onde se realizam algumas das cerimónias reais.
Ao contrário de outros pagodes, os monges não vivem aqui.

Calçados os sapatos, desço as escadas em direcção à parede que está à minha frente. Passo pela stupa dedicada à princesa Kantha Bopha, morreu de leucemia aos quatro anos, e chego à parede.
São os frescos do Ramayana que pela negativa atraem a atenção.




Pintados entre 1903 e 1904, eles percorrem toda a periferia interior dos jardins e descrevem episódios do clássico épico Hindu - Ramayana.
Este épico conta a história de Rama (o arqueiro), uma das encarnações de Vishnu, o Deus da Manutenção da Ordem do Universo.
Vishnu, juntamente com Brahma e Shiva, formam a trimurti, a trindade mais poderosa da mitologia hindu.

O seu estado de degradação é enorme e não parece haver sinais de restauro.
Particularmente a parte inferior parece estar já para além da recuperação. Está riscada, raspada e danificada pelos elementos naturais.

Fez-me lembrar as igrejas do museu ao ar livre de Göreme na Capadócia, Turquia. Ver arte mal tratada irrita-me. É assistir ao desperdício de cultura e de identidade de um povo. Fotografo um destes episódios e circulo um pouco mais pelo jardim.
É um jardim clássico, agradável, mas não deslumbrante.




O Mercado Russo

Apanho um tuk tuk e parto para o Mercado Russo (Phsar Toul Tom Poung), um dos vários mercados de Phnom Penh.
Paul, foi assim que acordamos chamar-lhe, explicou que o seu nome vem da década de 80 quando era essencialmente frequentado por russos. Com a voz abafada pelo ruidoso motor a dois tempos acrescentou que não era vulgar levar turistas a este mercado. Era sujo e quente. Aquilo que os turistas não desejam nem procuram ver.
Confirmou as indicações que eu tinha deste mercado. Tradicional, local e quase sem turistas. As várias ruas que lhe dão acesso estão pejadas de tuk tuks, bicicletas e motoretas.
Com várias entradas, este mercado é labiríntico. Entro nele sem grande esperanças de encontrar a saída correcta.

Paul tinha razão. Os turistas contam-se pelos dedos de uma mão e os corredores são estreitos, quase claustrofóbicos. Duas pessoas lado a lado passam com dificuldade. No entanto é isto que acontece a cada segundo que passa a cada passo dado. Filas ininterruptas de pessoas circulam aqui dentro, acotovovelando-se, com sacos em cima ou sacos em baixo conforme as necessidades.

O mercado está organizado por sectores assim como os odores: fruta, carne, peixe, drogaria, utilidades.
No lado do peixe e da carne, entre escamas a voar, baldes de gelo despejados sobre peixe, torneiras abertas, facas a serem firmemente enterradas numa peça de carne acabada de atirar para cima de um tampo ou por ser encostado às bancadas de mármore, as minhas calças aqui e ali vão ficando sujas. Pequenas medalhas de bravura atribuídas por circular nestes corredores.

Saio para o exterior, respirando o ar igualmente quente e húmido mas renovado. Na mão tenho um saco de fruta e uma palma de madeira laboriosamente esculpida com um Buda de cabeça dourada, comprado a Linath. Um jovem comerciante que complementa o dinheiro que a sua mãe ganha com a venda de fruta também no mercado, com a sua pequena loja. O seu objectivo é comprar um tuk tuk. "Os turistas dão mais dinheiro" piscando-me o olho e sorrindo. Dá-me um íman com um rosto de um Buda no templo de Bayon em Angkor, para colocar no meu frigorífico.


Tal como esperado, saí pelo lado errado. Olho para o mar de tuk tuks que tenho pela minha frente. Não necessito de chamar nenhum, só tenho de escolher quem me vai levar de volta à Rua 178.
Linath e o seu futuro tuk tuk será mais uma gota neste estridente oceano cinzento metalizado.


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