Camboja, Battambang I - o favor de Mr Poe

O terminal de autocarros era bem a imagem do que tinha vivido nestes últimos dias.
Um formigueiro aparentemente sem nexo e sem objectivo de bicicletas e motoretas, autocarros, vendedores ambulantes, agressivos tuk tuks em busca de passageiros e tímidos cyclos em busca das migalhas que os tuk tuk deixavam para trás.
Procurei o expresso para Battambang, perguntando a alguns angariadores próximos de mim qual seria, dado nenhum autocarro ali parado estar identificado.
Dirigi-me a ele, confirmei com o motorista que era o autocarro certo e sentei-me.

Depois da saída de cidade, dá-se a entrada num outro país. Através da janela assisto à transformação da paisagem.
Os cabelos femininos retomam a tradicional e asiática cor preta. Longos e reluzentes, correndo ao longo das costas, eles são atados com um elástico.
Os carros não são muito frequentes e as motoretas diminuem o seu número da estrada. É o reino das bicicletas.

Apesar de frequentemente remendada com pensos rápidos de alcatrão a estrada está em bom estado.
Os pequenos campos de arroz que estavam próximos da grande cidade transformam-se com o correr dos quilómetros em vastos arrozais. Neles, vejo os primeiros camponeses a cultivarem arroz e os primeiros búfalos de água de pele escura e aspecto aerodinâmico com os cornos meio retorcidos para trás da cabeça.




Próximo deles, estão as casas. Pequenas e simples cabanas erigidas em estacas.
Colunas de madeira com talvez 30cm de diâmetro, elevam a casa cerca de 2m acima do solo.
Tectos de chapa zincada bastante oxidada pela humidade ambiente servem de telhado. Na melhor das hipóteses, telha francesa.
Uma simples escada de madeira liga a casa ao solo. As mais sofisticadas tem escadas de cimento.
Nas entradas das casas e das pequenas lojas vêm-se pequenos santuários budistas com incenso e oferendas: fruta, arroz e dinheiro.

Seis horas após a grande confusão de Phnom Penh chego à pequena confusão da segunda cidade do Camboja.
Com pouco mais de cem mil habitantes, Battambang é a segunda maior cidade do país.
Mas o melhor de Battambang não é a cidade. É o que se passa fora dela, na sua periferia.
Para o descobrir é preciso alugar uma motoreta com um condutor local e fazer um pequeno "country tour".
E foi assim que fiz e foi assim que conheci Mr Poe.

Mr Poe, um sobrevivente do genocidio de Pol Pot, é um produto da aposta do Camboja no turismo.
Num bom inglês, conta que um dia um amigo seu conheceu uma viajante suiça em finais da década de 90 que queria conhecer os arredores da cidade por ter lido boas referências ao local num guia de viagem.
Esse amigo lembrou-se de Poe por simultaneamente ser um bom conhecedor da região e por falar inglês. Foi portanto chamado para fazer o favor à "estrangeira". O favor correu bem. 
A suiça, no ano seguinte voltou com amigos, o boca a boca começou a funcionar entre os turistas e os locais e agora Mr Poe tem um pequeno grupo de guias que com as suas motoretas mostram o lado rural da cidade.
Era esse o lado que eu estava prestes a conhecer.

A periferia é uma pequena cintura "industrial artesã" cujas unidades são pequenas aldeias que estão ligadas entre si por estradas mal alcatroadas ou apenas de terra batida.
Literalmente estas pequenas aldeias são especializadas em oficios sem ajuda de qualquer maquinaria industrial.

Elas alimentam Battambang e ainda vêm o seus produtos sairem para a capital e para os países vizinhos: Vietname e Tailândia.
Destas aldeias vem o papel de arroz, finíssimas películas circulares transparentes que serve para enrolar alguns prato de comida cambojana.




Vem a pasta de peixe de cor cinzenta esbranquiçada de cheiro de aspecto duvidoso e cheiro repelente que é secada ao ar ao longo de vários dias e que condimentam uma boa parte dos pratos de peixe e sopa cambojanas.




E noodles de arroz, uma aproximação ao esparguete tradicional, mas sendo branco e feito com arroz, tendo um diâmetro maior que o tradicional esparguete.




São estas algumas das indústrias a que estas aldeias se dedicam. Tudo feito artesanalmente. 
Doze horas de trabalho consecutivo sempre a fazer o mesmo, na mesma posição, os mesmos gestos e os mesmos cheiros característicos de cada uma delas.
Um rotina assassina que além de lhes destruir as articulações e o corpo, rouba-lhes o brilho dos olhos e esvazia-lhes os rostos.


Comentários