Egipto, Cairo - ruído, poluição e história


Uma coisa se pode afirmar sobre o Cairo, talvez não seja uma cidade que não dorme, mas pelo menos é uma cidade que se deita tarde.
Cheguei ao aeroporto por volta das três da manhã. Bastante mais tarde que o previsto. 
Preocupava-me a possibilidade de encontrar a porta do hostel fechada, apesar do aviso prévio de uma chegada tardia.
Só ter euros no bolso preocupava-me igualmente uma vez que retirava capacidade negocial com os taxistas.
Os receios revelaram-se infundados. Tudo funcionava. Até a casa de câmbio do aeroporto.
À saída os taxistas enxameavam e pouco tive que negociar. Na ânsia da conquista de um cliente, foi entre eles próprios que se negociou o preço. Só tive que escolher um entre os sobreviventes daquela refrega. 
O hostel também estava aberto, com um recepcionista sem o mínimo ar de ter estado a dormir.

Cairo é uma cidade que nos tritura, que exige bastante de quem a visita. É muito pouco "user friendly".
É uma cidade competitiva com engarrafamentos permanentes. Conduzir é um acto stressante e de extrema competição. Não tem a elegância do caos de Phnom Penh, Camboja. O trânsito não se comporta como um massa fluida de movimento. Não é previsível.



Luta-se pelo milímetro, pela não cedência e pela não concessão. Luta-se pelo chegar primeiro. Agressivamente. Conduz-se com a buzina até à exaustão, até elas ficarem roucas.
Atravessar estradas é um exercício de risco. Um acto que não se deseja mas que se necessita. Algo que se faz esperando que corra bem.

A poluição é uma névoa permanente que retira o brilho e as cores da cidade. Torna-a baça, visualmente indistinta. Um véu denso e permanente que lhe tolda os sentidos. Castiga os pulmões e impregna a roupa. Omnipresente e perceptível em todo o lado.
Estima-se que cerca de 40% da população do Cairo tenha problemas respiratórios.

Erguendo-se a 187m acima da cidade, a Torre do Cairo - com a forma de uma flor de lótus - é o edifício mais alto da cidade. Tem uma visão privilegiada sobre ela e sobre a neblina suja e densa que a cobre. A qualquer hora do dia. 
Situada na ilha e distrito residencial da classe média alta de Zamalek é a outra face do Cairo. Uma face bem mais calma e relaxada.
É onde estão as grandes cadeias de hotéis e os melhores restaurantes. Onde a maneira de vestir se ocidentaliza, o inglês melhora consideravelmente e onde o Cairo se aristocratiza.
O lixo e a sujidade deixa de ser chocantemente visível e as ruas ganham uma nova dignidade.


Não ouvimos o ruído crepitante dos engarrafamentos, das buzinas e estamos afastadosdo ar pesado da cidade. Podemos ver e apreciar o Nilo e pela primeira vez encontramos espaços verdes. Aqui, a cidade abranda e os nossos sentidos também.

Dou meia volta. Para cá tinha ido pela ponte 6 de Outubro, agora escolho a ponte Asr El-Nil. Dois imponentes leões um de cada lado da ponte identifica-a facilmente. Estou de novo na selva do centro do Cairo. Caminho em direcção à Praça Tahrir, próximo desta está o Museu Egípcio.

Olho para a sua fachada rosa velho com um misto de expectativa e ansiedade. Há muito que aguardava por esta oportunidade.
Em frente à entrada está um pequeno lago. Nele estão duas plantas sagradas para os egípcios: o papiro e a flor de Lótus.
O primeiro representa o Baixo Egipto (o norte) e com ele se fazia papel, a segunda planta representa o Alto Egipto (o sul) e a ressurreição.

Dois sentimentos convivem em simultâneo quando entramos neste edifício: excitação e frustração.
Excitação pelo incrível legado histórico que se pode observar neste museu projectado e construído pelo arquitecto francês Marcel Dourgnon e inaugurado em Novembro de 1902.
Diz-se que tem mais de 120 mil peças em exibição e mais outras tantas nas suas caves.

Dada a dimensão deste museu e a enorme quantidade de peças expostas e estando muitas delas sem indicações, identificações ou um descritivo da sua história, data e/ ou proveniência, vale a pena contratar um guia no museu.
É com ele que durante cerca de duas horas faria uma viagem pelas principais peças do museu e pela história do Egipto.

O seu ex libris é a máscara de ouro de Tutankhamon e acrescentaria a título pessoal, a réplica da Pedra de Roseta. A pedra original está no Museu Britânico em Londres. É um marco fundamental na egiptologia. Foi através dela que Jean François Champollion conseguiria pela primeira vez decifrar os hieróglifos egípcios.

Ao contrário do que se pode pensar, Tutankhamon não foi um faraó particularmente importante na antiga história egípcia. Nasceu em 1341 AC e morreu com 19 anos em 1323 AC, sem ter deixado grandes marcas na sua época.
Mas impõe-se actualmente, porque quando Howard Carter em Novembro de 1922, descobriu o túmulo - KV62 - do menino-faraó no Vale dos Reis, verificou que este estava praticamente intacto e com a quase totalidade das suas riquezas no seu interior. Caso verdadeiramente raro, porque a regra é os túmulos estarem saqueados e despojados dos seus conteúdos.
A sua descoberta, abriu uma janela única em termos do conhecimento que se adquiriu ao nível dos costumes e práticas daquela época.
São estas riquezas, esculturas, tronos, adornos, armas, mobília, tecidos e peças do seu dia a dia que se podem admirar no segundo piso do Museu Egípcio. Particularmente a beleza incrível da sua hipnotizante máscara de ouro.


Mas para quem a história diz alguma coisa, para quem a valoriza, este museu transmite uma sensação negativa de frustração e abandono.
As peças, quase todas multimilenárias, estão literalmente amontoadas e empilhadas ao longo dos corredores das diversas salas ou então no meio deles. Não têm enquadramento histórico.
Estão desprotegidas, cobertas de pó, sem vigilantes e de fácil acesso ao toque físico. O ambiente não é controlado e em muitas peças o sol incide directamente sobre elas. 
No pátio exterior estão colocadas várias peças originais e sem qualquer cuidado as pessoas trepam para cima delas para tirarem fotografias.

Mete dó ver arte e história com cerca de três mil anos a serem destruídas à mão de turistas irresponsáveis.
Não se pode tirar fotografias no interior do museu. As máquinas são nos retiradas e somos revistados mas depois há uma imensa falta de respeito pelas obras expostas.
Quer pela parte de quem visita e principalmente pela parte de quem devia proteger a sua própria história.

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