Camboja, Battambang II - uma grande molha e um pequeno comboio

Eu e Mr Poe já tínhamos acabado a ronda das aldeias. A sua sugestão tinha sido ir dar uma volta no Bamboo Train.
Ainda distava alguns quilómetros do ponto onde estávamos. A dada altura Mr Poe pára a motoreta e olha-me com um rosto misto de preocupação e divertimento. Sorri, espeta um dedo para o alto e pergunta se tenho uma capa de chuva para a máquina fotográfica e outra para mim.
Para a máquina claro que tinha e para mim claro que não. Continuando com o dedo espetado, profetiza: "Vai chover. É melhor comprar um impermeável". Agradeço e confirmo que não é preciso.
Na verdade não precisei, porque seria completamente inútil.
Era um bom profeta, talvez 15 minutos depois começou a chover. Gota a gota.
Uma aqui, outra ali. Grandes e pesadas. Quentes. Cada uma delas valia por uma chuva. Depois... o dilúvio.
Com a velocidade da motoreta elas doíam na cara. O escudo que eram as costas de Mr Poe pouco valia.
Abrindo a boca para o ar, ao fim de alguns segundos já bebia goladas de chuva. Por baixo de mim, as rodas traçavam efémeros sulcos na água barrenta. Lama vermelha chapinhava-me os joelhos continuamente.

À medida que a estrada batida se transformava num imenso lamaçal, a vida mantinha-se imperturbável. Ninguém corria, ninguém se protegia da chuva e não se viam chapéus de chuva. As motoretas passavam, as bicicletas passavam, os animais passavam. Na verdade nada se passava. Apenas pragmaticamente alguns troncos nus tinham aparecido.

Equilibrei a (bem protegida) máquina fotográfica entre as minhas pernas e as costas de Poe, abri os braços e numa versão ensopada de lama, bem mais rasteira e patética que Titanic e deixei a água invadir a alma. Um king of the world de ocasião. Mentalmente fixei o momento para a posteridade.


Parecia um pequeno stand de vendas de pão quente.
Uma estrutura simples com ripas de madeira bem alinhadas coberta por um toldo que oferecia a protecção possível da chuva. Tanto quanto os seus inúmeros furos permitiam.
No seu mal iluminado interior, três, talvez quatro mesas, cada uma com dois bancos. Tudo de madeira.
A um canto, dois senhores numa improvisada mesa, um pouco mais alta e mais larga, vendiam os bilhetes para um passeio de Bamboo Train.

Vale a pena ir a Battambang só por ele. O Bamboo Train é uma das coisa mais fixes que se pode fazer no Camboja.
Em Khmer o seu nome é "norry". É da década de 10 ou 20 do século XX. Em tempos ia até à fronteira com a Tailândia. Agora já deixou de ir a Phnom Penh. Actualmente liga algumas pequenas aldeias entre si.
Apesar de ser um dos "cartazes" turísticos de Battamang, a população local faz bom uso dele. Tal como os "chicken bus" da América Central, o que couber no estrado vai. Animais, bicicletas, farinha, fruta, o que for.

Os bamboo train são plataformas, tipo estrados de ripas de madeira (já não são de bambu) com 2m x 3m, montadas em dois pequenos rodados de comboio adaptados de material abandonado que correm nuns carris com cerca de 1m de bitola (largura).


Os motores são tão variados quanto se queira desde que sejam pequenos: motoretas, pequenos tractores, corta relvas, tudo serve. A ligação do motor aos rodados e respectiva transmissão é feita através de uma correia.
Puxam uma pequena corda, como um corta relva ou uma moto serra, o motor arranca e com ele o bamboo train. Pode-se atingir cerca de 40 km/h.
Entre nós e o encharcado estrado - a poucos centímetros acima dos carris - é colocada simpaticamente uma pequena manta para nos sentarmos. E uma vez sentados nela é.... weeeeeee!!!
Ele vibra, dá saltos, abana, sacode e é ruidoso. É preciso prestar atenção, desviar dos ramos mais baixos que se cruzam connosco e curtir. Dificilmente seria melhor.
Mas só há um carril! O que acontece se vier outro bamboo train em sentido contrário? Utiliza-se o cavalheirismo.



Quem estiver no que for considerado mais leve apeia-se e vai para o lado. Tira-se o estrado e os rodados do carril, o mais pesado passa e depois faz-se tudo ao contrário. Os rodados são colocados de novo nos carris, o estrado volta para cima deles, os passageiros e respectivas cargas sobem de novo, puxa-se mais uma vez pela corda e... weeeeee!!


Este passeio demora talvez uma hora no total. A paragem é uma pequena ponte com vista para os arrozais.
A chuva deu uma ligeira trégua. Com os dois braços orgulhosamente tatuados, Nuti, o sorridente "maquinista" do meu bamboo train, aproveita e mergulha da ponte. Convida-me a fazer o mesmo. Bastante tentado ainda pensei no assunto, mas não creio que o meu sistema imunitário esteja preparado para mergulhar nas águas que alimentam os arrozais.
Com alguma inveja fiquei cá em cima a olhá-lo. Como prémio de consolo pude durante alguns minutos apreciar as cores do final do dia. Entretanto Nuti subiu e fez sinal para o regresso.


Tinha já Mr Poe à minha espera para me levar de volta para o hotel. Pelo caminho falámos de futebol e do inevitável Cristiano Ronaldo. Vive um pesado dilema: "Sou adepto do Barcelona e detesto o Real Madrid, mas Ronaldo é melhor que Messi lamenta. Uma alma torturada.

Consciente do meu lastimável estado, cheguei à entrada do hotel encolhendo os ombros e rindo com vontade para a recepcionista.
Para não se ouvir o shlep shlep da água comprimida pelos pés nas minhas botas cheias de água, tirei-as.
Foi só mesmo por delicadeza e descargo de consciência, porque o rasto de água deixado nas escadas facilmente apontava para o quarto do culpado. Olhei divertido para a minha culpa a acumular-se nas escadas e continuei a subir.
Fui directo para o chuveiro. Creio que foi a primeira vez que tomei banho vestido.
Estendi a roupa lavada, a cheirar a gel de banho aveia e mel, na varanda do quarto. De manhã estaria como nova.





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