memórias de um velho passaporte


Estou de regresso de uma viagem que me levou ao Quénia, Uganda e Ruanda.
Como em todos os regressos, sinto aquela nostalgia daquilo que estou prestes a deixar para trás ao mesmo tempo que mentalmente me preparo para enfrentar de novo a rotina que durante algumas semanas foi afastada.
Penso para mim próprio que para poder partir de novo preciso chegar primeiro. Enfim, vale o que vale mas ajuda.

Nos placards electrónicos do aeroporto de Nairobi confirmo a "gate" e hora de embarque do meu voo.
Por volta das 23.30 embarco no Boeing 767 da Alitalia, que me levará até Roma em Itália. Este será o primeiro de três voos até chegar a Portugal.
Encontro facilmente o meu lugar, o 35A, na coxia como tinha pedido no check in. Arrumo a minha mochila, sento-me e espero uns minutos até o avião estar no ar.
Os assistentes de voo servem a refeição da noite, levantam os tabuleiros e fazem um último pedido para bebermos qualquer coisa antes de o avião "adormecer".
Peço um sumo de maçã, vou buscar o meu passaporte já quase caducado à mochila e preparo-me para viajar pelas memórias que ele encerra.

Reparo com curiosidade que começou e encerrou sob o signo de África. E de zonas e culturas bem distintas entre si mas igualmente muito marcantes. O primeiro carimbo é do Norte de África, Marrocos, o seu último é da África Oriental, Ruanda.
É deste continente que vêm as melhores recordações.

Estive em Marrocos dois anos consecutivos, 2002 e 2003 sempre por altura da Páscoa. Foi por causa deste país que tirei este passaporte.
Diria que é o país da "primeira vez". Foi a primeira vez que viajei para fora da Europa, foi a primeira vez que viajei para África e foi a primeira vez que estive num país maioritariamente muçulmano.




Em ambas as vezes estive lá para escalar no Alto Atlas.
No primeiro ano, o Atlas estava com um belo vestido de noiva. Um extenso véu branco por todo lado devido a uma tempestade de neve que durou vários dias.
No ano seguinte vestiu-se com o seu melhor fato primaveril. Verde, flores, muito cascalho e alguma neve nos picos mais altos.

De África retenho outros carimbos importantes para mim. Tanzânia, Namíbia e Botswana são alguns deles.
Tanzânia em 2004 foi para escalar o Kilimanjaro e ficar com o continente africano a meus pés e fazer os meus primeiros safaris na minha vida: Lago Manyara, Cratera de Ngonrongoro e Serengueti.
Ainda hoje, a Cratera de Ngonrongoro é um dos sítios mais belos onde já estive. Talvez apenas o Vallée Blanche no maciço do Monte Branco - Alpes franceses - o iguale ou até o supere.




A Namíbia é um dos meus três países de eleição. Sossusvlei, a Duna 45 e o Deserto do Namibe, PN Etosha e o contacto com os Himba são muito difíceis de esquecer. 
Botswana impõe-se pela plácida beleza aquática do Delta do Okavango e pelo safari de barco feito no Chobe River.
E claro o Ruanda, devastado pelo genocídio de 1994 onde cerca de um milhão de Tutsis perderam a sua vida às mãos de Hutus. Foi neste país em plena reconstrução e recuperação que encontrei o mítico gorila da montanha de dorso prateado.

Espalhados por várias páginas estão os carimbos de dois países da América do Sul, Argentina e Chile.
É do longínquo sul destes países que vem uma das minhas maiores, melhores e mais bonitas viagens que fiz até ao momento: Patagónia.
Deles brotam paisagens deslumbrantes de florestas, de agulhas e montanhas, rios de água gelada de aspecto leitoso, cascatas, longos trekkings, alguma chuva, frio e... vento, mesmo muuuuito vento. Sinto ainda fortes as picadas que as gotas de água levantadas das lagoas por fortíssimos ventos que provocavam na cara.
Esta extraordinária viagem terminaria onde devia, em Ushuaia, a cidade mais ao sul do mundo.

Um discreto visto quadrado de cor amarelo torrado com a data de Dezembro de 2007 tornou o Japão o meu primeiro país asiático.
Fiz a passagem do ano 2007/08 em Tóquio, no distrito de Shibuya.
Rio-me com vontade com a memória deste final de ano.

Alguém disfarçado de Power Ranger rosa pôs milhares de pessoas a abraçarem-se umas às outras, vezes sem conta, sempre que os sinais de trânsito ficavam verdes para os peões.
As passadeiras de Shibuya em frente à estação de comboio desapareciam durante os vários segundos que aquele monumental e frenético abraço dado ao ritmo dos semáforos durava.
Foi uma passagem de ano celebrada com sake bem geladinho à temperatura ambiente de -2ºC.
Apenas uma outra passagem de ano em Zurique seria mais fria com -4ºC.

Mesmo assim os milhares de Tóquio não chegaram aos calcanhares do milhão de pessoas que estiveram na da passagem de ano de 2003/04 nos Estados Unidos da América em Times Square, Nova Iorque.
Ainda com a memória muito recente dos atentados de Setembro de 2001 a marcar a maior passagem de ano do mundo, todas as pessoas foram revistadas individualmente por milhares de polícias.
Durante a minha revista tive que separar o corpo da máquina fotográfica da lente para mostrar que realmente se tratava de uma máquina fotográfica.
Havia snipers nos topos do edifícios e o céu nova iorquino foi constantemente patrulhado por helicópteros.

A partir do Japão, folheio uma quantas páginas para a frente e dou um pulo para Ásia Interior, a Mongólia.
É fácil e rápido cruzar fronteiras num passaporte. Se há países importantes para mim este é um deles.




É até ao momento o meu eleito. É difícil explicar a Mongólia.
Quando me perguntam porque escolhi este destino, usualmente respondo "porque ninguém vai lá". O que é verdade, mas talvez tenha sido o Deserto de Gobi a fazer o apelo à viagem. Para além de saber que ficava na Ásia, era a única coisa que conhecia deste país.
Mas o meu desejo secreto de um dia ver uma tempestade de areia concretizou-se em Dalanzadgad, uma pequena cidade situada na orla do Gobi. Uma preciosa base de apoio para quem se dispõe a entrar pelo deserto dentro.

Para acompanhar a Mongólia e a Namíbia e assim completar o Top 3 dos meus países preferidos, mantenho-me na Ásia mas tenho que viajar até ao Sudeste Asiático para poder entrar num país que tal como o Ruanda sofreu os horrores e a brutalidade de um genocídio, o Camboja.

Não fui diferente da maioria dos viajantes. Estava muito "fisgado" na capital Phnom Penh e claro nas ruínas de Angkor Wat.
No entanto reduzir este país a estas duas pérolas é um erro. Camboja é um colar cheio delas. Kampot e Kampong Cham são duas bem bonitas.

Se dos carimbos do Chile e Argentina saem paisagens e ventos fortes, do carimbo da Guatemala saem cores vibrantes e saturadas.

A Guatemala, na América Central, é sem dúvida um dos países mais coloridos por onde já viajei e também dos mais variados. Para quem viaja para este país, pode encontrar cidades coloniais, lagos, vulcões, o fabuloso mercado de Chichicastenango e a mítica cidade maia Tikal, que injustamente perdeu para Chitzen Itza no México como uma das novas 7 maravilhas do mundo.




Mas é no Belize que está o momento mais marcante de todas as viagens que constam neste passaporte. Concretamente na ilha de Caye Caulker, localizada no Mar das Caraíbas e em plena barreira de coral do Belize, a segunda maior do mundo.
Um incrível dia de snorkling feito na reserva natural Hol Chan poria literalmente uma raia nos meus braços. Ainda hoje sinto esse toque nos meus braços, continua macio e gelatinoso como no primeiro dia.


Levanto a cabeça e olho à minha volta. Vejo cabeças tombadas e pés descalços fora dos bancos. As luzes da cabine estão já há algum tempo apagadas e o silêncio está instalado por todo o avião. Nos ecrãs passa o filme Águia da Nona Legião que não me consegue cativar.
Fecho e arrumo o meu velho passaporte, a minha luz individual, os meus olhos e tento dormir.
Coisa difícil quando estou a voar, a posição sentada não puxa o sono.
Olho para o relógio e resignado verifico que ainda faltam 6 horas para chegar a Roma e mais outras tantas até chegar a Portugal.


Comentários

  1. porque não transcrever as memórias destas viagens para um livro? qual será a próxima?

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  2. Viajo no meu lugar ao ler estas descrições.

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