Egipto, Cairo - as Pirâmides do meu descontentamento

Do centro do Cairo às Pirâmides, dependendo do quanto o nosso motorista consegue ser mais agressivo e vociferante que os seus restantes colegas, é cerca de quarenta minutos.Até lá revi todas as minhas expectativas em relação a elas. Como elas seriam, como é estar frente a frente com um gigante da história, que impressões, que emoções elas causariam em mim e se corresponderiam às dezenas de fotografias que vi delas, se conseguiria fotografá-las.

Quando estive pela primeira vez no Museu D'Orsay em Paris, vi também pela primeira vez quadros e estátuas emblemáticas para mim, que ao longo dos anos me habituei a ver em páginas de livros ou de revistas.
Tê-los à minha frente, quase sentir a presença física do seu autor, poder quase respirar a sua respiração, ver e conseguir individualizar os seus traços do seu pincel, é verdadeiramente muito poderoso. A palavra que usualmente utilizo para explicar esta sensação é "esmagador".

Esmaga, porque sentimos todo o seu peso histórico, mais do que o estético, porque sentimos a genialidade do seu autor. Porque estamos na frente de uma obra de arte o que cruzou os tempos sem perder importância - a prova do tempo é a maior prova de fogo que se pode enfrentar - ou até a viu aumentar. Terá sempre algo para mostrar, algo para ensinar. São obras que muitas vezes só se sentem e não se explicam.
Serão obras que devidamente cuidadas e estimadas podem ser imortais. São obras que mostram o que há de mais belo no Homem. É Humanidade no seu melhor.
A prova cabal que o Homem não causa só a destruição, mas que também sabe criar. É quando merece e vai ao encontro da sua redenção.


A Grande Pirâmide de Quéops


Ok. Tudo isto se aplica às Pirâmides de Gizé. A prova do tempo, a tal prova de fogo que elas passaram é incrível. É uma escala de tempo que escapa à percepção humana. Estamos a falar de cerca de 4500 anos de história que elas assistiram e por elas passaram.
Em 1798 a História menciona a História. Nas margens do rio Nilo, Napoleão Bonaparte terá dito aos soldados franceses: "Soldados, do alto destas pirâmides quarenta séculos vos contemplam".

Os faraós que as erigiram ganharam imortalidade através delas. Uma civilização ganhou imortalidade através delas.
Estar com elas, perto delas, sentir a sua presença, não se explica. Não se consegue escrever ou fotografar. Somos esmagados por elas. Pela sua história, pelo poder que emanam, pela imponência, pela perfeição simples da sua geometria.
Espantosamente, numa sociedade altamente tecnológica, em que nos podemos permitir aspirar à auto-deificação, em que podemos brincar aos Deuses, não somos capazes de explicar quatro mil e quinhentos anos depois como estas Pirâmides foram construídas.
Desde elaboradas hipóteses de engenharia civil às teses de um empurrãozinho de uma civilização extraterrestre, tudo se propõe. Elas insistem em desafiar-nos e esconder os seus segredos.


Pirâmide de Quéfren

Agora estão ameaçadas de morte. A sua imortalidade está em risco. A caótica, ruidosa e poluída cidade do Cairo que as submerge numa neblina densa e sufocante, está literalmente à sua porta.
De acordo com Karim, o guia que estava comigo, o interminável vai-vém dos táxis, dos autocarros, a construção de parques, o asfaltar do piso, a proximidade da cidade e a exploração de algumas pedreiras  estão introduzir vibrações no solo que as vão desagregando aos poucos e poucos. A Esfinge está já afectada e está em processo urgente de consolidação.
Os turistas estão a destruí-las, a desrespeitá-las. O solo que quase deveria ser sagrado, está pejado de garrafas de plástico, maços de tabaco, latas de refrigerantes, restos de comer.
Sobem para as pedras, sem o menor respeito. É fácil encontrar nos blocos de pedras, as malditas gravações de "x love y" ou o omnipresente "I was here".
Os guardas que as vigiam, trajados de negro, são displicentes. A sua maior preocupação são as fotografias em pose com os turistas a troco de alguns dólares e não impedir a invasão do perímetro de proximidade.


Angariando turistas com a pirâmide de Quéfren em fundo

Camelos e cavalos são maltratados. Cada vez que se ouve um silvo no ar, um silvo que nos rasga o ouvido e a alma, um cavalo é violentamente chicoteado e empina-se com a dor. Os seus cascos, sem tracção, escorregam no asfalto e por isso a sua pele ainda é mais vergastada pelo chicote. Uma e outra vez. Sem sentido, galopam de um lado para outro à procura de turistas, num cansaço vão. Estão cheios de cicatrizes, magros, ofegantes e espumam da boca sem nada para beber.
Os camelos têm as patas feridas, os seus lombos estão igualmente feridos por selas e arreios demasiado apertados. Não se vê nada que proteja estes animais do forte calor, ainda assim suave, de finais de Dezembro.

Com mais de quatro milénios anos de história em cima dos seus ombros, ou melhor, dos seus vértices, não são respeitadas quando deveriam ser reverenciadas. Não são protegidas, não se sente que haja carinho por elas. Não são abraçadas.
O seu espantoso legado histórico é totalmente secundarizado perante as oportunidades de fazer dinheiro.


Pirâmide de Miquerinos


Visitar as Pirâmides do Egipto era o cumprir um sonho. Era algo quase de espiritual. Uma experiência única que se leva para a vida. Pretendia ser esmagado. Na verdade foi e fui, mas também foi uma experiência dolorosa, triste e negativamente pesada.

Se pudesse levava-as para o meu quintal. Com elas, levaria os cavalos e os camelos. Estariam lá sossegadas e sossegados e em paz. Todas as manhãs as cumprimentaria ao nascer do sol e far-lhes-ia uma saudação ao pôr-do-sol. Certamente que aguentariam um novo ciclo de imortalidade.


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