Uganda, Katuna, fronteira com o Ruanda - o plastificador de memórias e dois encontros

Tive que impor a minha altura e os meus 91 kgs para conseguir ultrapassar a muralha de costas que tapam o postigo do posto fronteiriço ugandês de Katuna.A minha mão segurando o meu passaporte com a permissão de entrada no Ruanda e mais vinte cinco dólares para o visto, junta-se finalmente ao mar de mãos que se esticam por ele dentro.
Sinto uns dedos a tirá-lo das minhas mãos e vejo-o a dissolver-se na confusão espalhada de passaportes da única secretária do gabinete de fronteira. Não consigo deixar de me sentir apreensivo com o seu destino. Tenho que esperar. Hei-de ser chamado certamente.


Deambulo pela área. Tirando a confusão do guichet burocrático, está tudo calmo. Quatro camiões de transportes de mercadorias e uma pequena carrinha branca de caixa aberta estão estacionados em fila, um par de militares circula pela área e algumas pessoas com cestos e tabuleiros vão tentando vender a quem passa artigos de ocasião.

Encontro-o encostado a uma pequena cerca de tábuas ripadas, sentado num pequeno banco desdobrável de madeira escura. Da mesma cor e tipo que a pequena mesa, também ela desdobrável, que ele tem à sua frente. Sobre esta, um rolo de papel plástico, uma tesoura e uma pequena e tosca espátula de plástico quadrada de cantos arredondados e embotados pelo uso.
Tem a dignidade de um chefe de estado. Rosto grave e sério, mas não inexpressivo, bem sulcado pela idade. O olho direito tem a cobri-lo uma catarata que lhe dá uma coloração diferente do castanho profundo que o esquerdo apresenta. Dedos magros, quase ossudos executam gestos lentos mas precisos. Quase carinhosos.

Do seu lado esquerdo, uma fila razoavelmente bem ordenada - o oposto do que acontece no postigo fronteiriço - talvez uma dezena de pessoas, vão-lhe dando à vez papeis para serem plastificados.
Uns com aspecto de documentos com logos de diferentes tamanhos e cores, outros são folhas em tamanho A4 de várias cores cheio de carimbos de um lado do outro, outros ainda completamente amassados e surrados pelo uso, com notações escritas à mão, fotografias e assinaturas. Talvez a plastificação seja um meio para adiar por mais uns tempos a desagregação anunciada.

Cesar é um pequeno e curvado ugandês de oitenta e dois anos que faz todos os dias a pé, os cerca de três quilómetros e meio que separam a sua casa do pequeno posto fronteiriço de Katuna no Uganda e que faz do fluxo de pessoas entre os dois países, o seu negócio: plastificar documentos.

Parece ter orgulho no que faz. E se tiver, faz bem.
Por alguns xelins, este ugandês não só plastifica documentos, mas também preserva pedaços de memórias. Assinaturas que terão tido influência ou decidiram a vida de alguém, notas escritas que o foram para não serem esquecidas, fotografias que marcaram encontros ou desencontros, momentos congelados nesse instante.

Entregue há mais de uma hora continuava sem notícias do meu passaporte com os vinte e cinco dólares e a respectiva permissão de entrada no Ruanda. De vez em quando ouvia os nomes a serem chamados com a respectiva devolução. Megan, John, Chang, William, Maya....
Ainda precisei de mais meia-hora para com alívio ouvir o meu nome. A mão que o tinha engolido estava agora a regurgitá-lo. O passaporte voltava finalmente à minha posse.

Com todos os passaportes já entregues, segui os meus companheiros de viagem. A fila tinha diminuído mas Cesar ainda continuava a plastificar algumas memórias que estavam acumuladas em cima da mesa. Mostrei-lhe o meu polegar direito bem levantado e da Katuna ugandesa atravessei para a Gatuna ruandesa.
O overland tinha atravessado primeiro a fronteira e estava à nossa espera.

Sentado e olhando para o passaporte carimbado que tinha na mão, sabia que aquele carimbo me iria proporcionar dois encontros marcantes na minha vida.
Um, não só com a história do Ruanda mas também com a história universal: o terrível e brutal genocídio ruandês de 1994.
O outro encontro, desta vez com a história pessoal, mais aguardado, mais desejado e até sonhado, o encontro com o incrível gorila da montanha no Parque Nacional dos Vulcões.


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