Ruanda, Kigali - Memorial do Genocídio


Tal como no Camboja, sinto de novo o peso da incredibilidade perante a incompreensível carnificina e do horror que aconteceu em cerca de três meses por todo o Ruanda com especial destaque para Kigali.

Neste período de 100 dias, entre Abril e Julho de 1994, oitocentos mil a um milhão de tutsis e hutus moderados foram metodicamente chacinados às mãos de hutus radicais.
Os números são frios. Se fizermos as contas significa que todos os dias em média, morreram 8 000 a 10 000 pessoas. Os assassinos estavam bem ensaiados e orquestrados. Eram metódicos, impiedosos e foram directos ao "assunto".

Inaugurado a 7 de Abril de 2004, altura em que se passavam dez anos sobre o início do genocídio ruandês, o Memorial do Genocídio em Kigali, capital do Ruanda, é dedicado a todos aqueles que perderam a vida e às suas famílias nesses infames 100 dias de chacina de 1994.

Pensativo e em silêncio desço as escadas que me levavam para a entrada. Preparo-me mais uma vez para ver (e não compreender) o que a Humanidade tem de pior.
Uma chama eterna, num pequeno lago com duas fontes, uma de cada lado, marca o início da visita.




O panfleto que me foi dado alguns minutos antes e que seguro nas minhas mãos diz que o Memorial está erigido sobre valas comuns onde estão enterradas mais de 250 000 pessoas chacinadas no genocídio ruandês.

Desço mais um lance de escadas e encontro as valas comuns. Grandes campas rasas de cimento aglomerado róseo estão à minha frente.
Em todas elas e por cima, pequenas rosas e arranjos de flores brancas - jarros - elegantemente atados com fitas brancas, estão colocadas ao longo do comprimento das campas.
Uma delas tem uma janela envidraçada que permite espreitar o seu interior.






Um terceiro lance de escadas leva-me para um segundo grupo de campas e à Parede dos Nomes onde estão gravadas, em fundo negro, uma longa lista (ainda em actualização) de nomes das pessoas que aqui perderam a sua vida.






No interior do Memorial, várias salas descrevem, ilustrando com fotografias e testemunhos dos intervenientes toda a cronologia dos acontecimentos que culminariam no genocídio.

No andar de cima, uma exposição explica a origem da palavra e do conceito de genocídio.

Um termo introduzido pela primeira vez em 1944 pelo advogado judeu e polaco de nome Raphael Lemkin para explicar o que os nazis fizeram ao povo judeu.
Ele uniu a palavra grega genos (tribo, raça, família) à palavra latina cidio ou caedere (assassinato, matar,destruição, aniquilamento).
Em 1948 a palavra genocídio ganhou estatuto quando a Assembleia Geral da ONU adoptou a Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio.

No mesmo andar uma infografia chama a atenção para os vários genocídios que ocorreram na história recente.

  • Em 1904 massacre do povo herero às mãos dos alemães
  • Em 1915 o povo arménio viu serem assassinados às mãos dos turcos cerca de um milhão de pessoas
  • Entre 1933 e 1945 o maior genocídio da história, cerca de 5 a 6 milhões de judeus foram mortos pelos nazis alemães
  • Camboja, entre 1975 e 1979, cerca de dois milhões de cambojanos foram mortos pelos Khmers Vermelhos de Pol Pot.
  • Também entre 1975 e 1979, após descolonização portuguesa, a Indónesia invade e anexa Timor Leste e duzentos mil timorenses são chacinados. Um terço da população na altura.
  • E bem mais recentemente e actualmente em curso, mas mais uma vez cinicamente não reconhecida pela comunidade internacional, o genocídio do povo tibetano às mãos dos chineses.


Uma pequena sala tem exposta, de uma maneira simples, colecções de fotografias com rostos das pessoas que perderam a vida.
Testemunhos e histórias dos sobreviventes podem ser lidas um pouco por todo o edifício.




No exterior, está o Centro Nacional de Documentação para o Genocídio, e os jardins Memorial Gardens.
Estes últimos cheios de elementos simbólicos alusivos não só ao genocídio, mas também à morte, ao sofrimento, à esperança e à unidade e harmonia entre os povos, estão mal tratados.
A água, fio condutor e de união entre os diversos jardins, segundo a descrição do mesmo panfleto, não corre.
As cascatas estão secas, cerâmicas e pequenas esculturas apresentam sinais visíveis de deterioração.

O Memorial, dado o mau estado de conservação e não sendo um local de particular interesse, é um espaço que quase deveria ser obrigatório a sua visita.
Dada a sua natureza e objectivo é um espaço que convida naturalmente à reflexão.

Faz lembrar não só a morte de um milhão de ruandeses, mas também a maneira como foi pensada, ensaiada e perpetrada a chacina e a forma como a comunidade internacional, consciente do que se estava a passar e alertada para o que poderia vir (e estava) a acontecer, ignorou todos os avisos e deixou que o genocídio ruandês acontecesse.

Na saída, ao afastar-me do Memorial, as várias perguntas que pairavam na minha cabeça continuavam sem resposta.
Mesmo conhecendo os contextos históricos e os motivos dos genocídios cambojano e ruandês, o que leva a que nestes dois países em particular, pessoas que se conhecem, que conviveram lado a lado, muitas vezes familiares, levem a cabo uma matança generalizada e indiscriminada contra alguém que verdadeiramente e na essência nada diferem de si?

Que níveis de raiva, revolta, inveja ou medo serão necessários para que um genocídio aconteça?
Como é possível que a comunidade internacional não intervenha quando um acto destes está em curso, como aconteceu no Sudão na região do Darfur, Timor-Leste, ou actualmente no Tibete?
Como é possível a alma humana poder ser tão negra e perversa?


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