Ruanda - pensamentos à janela

Bwenge e o Parque Nacional dos Vulcões estão a ficar lá para trás. O camião overland rola os seus últimos quilómetros pelas estradas ruandesas. À janela vejo a paisagem acidentada a desfilar pela minha janela.
Por ela passam plantações de chá e de café a serem trabalhadas e pouco depois um casal caminha na beira da estrada com ferramentas na mão, seguidas por duas meninas que retribuem o meu acenar quando a minha janela passa por elas.
De cabeça encostada ao vidro penso no país que dentro de algumas horas deixarei para trás.

Ruanda, o país das mil colinas. É um nome justo.
Deve ser um dos países africanos mais montanhosos em que já estive e tem as paisagens de encostas íngremes a condizer.
É o país mais densamente povoado de África. Estima-se que por cada quilómetro quadrado existam mais de 400 habitantes.

Em 2005, em média cada mulher ruandesa tinha cerca de 6.5 filhos.
Sociologicamente e estatisticamente sabe-se que as vítimas de genocídio tendem a aumentar o número de filhos em tempos de estabilidade. Uma maneira de compensar e repor a família perdida assim como os afectos destruídos, dizem os livros.
Com o crescimento desordenado da população e com poucos recursos naturais, o governo ruandês quis introduzir em 2007 o limite de três filhos por família através da divulgação de metodologias de planeamento familiar.
Apesar de esta política nunca ter sido oficializada, apenas divulgada, o facto é que em 2010 um estudo realizado internamente mostrou que estava a ter sucesso. A média de crianças por mulher tinha baixado para 4.6.

Com uma população ainda em franco e rápido crescimento, não é admirar portanto que todo o recanto deste país seja cultivado.
Isso faz com que a imagem que o Ruanda dá a quem por ele circula é a de um país que tem um propósito, que sabe o que tem que fazer, que está em crescimento e que procura o seu desenvolvimento.
Faz do seu grande cartão de visita, os gorilas da montanha, uma enorme fonte de rendimento. Eles atraem cada vez mais e mais turistas para o país.
O Ruanda, a par do Uganda é um dos países do mundo onde é possível observar em segurança estes extraordinários animais.
Bem consciente disso, este país tenta mudar a imagem violenta que o seu passado cruel lhe atribuiu. Aboliu há muito as etnias e é agora um país em paz, seguro e a modernizar-se.
As estradas estão alcatroadas, as casas estão bem erigidas e cuidadas, o comércio parece florescer e as vilas e cidades são limpas e pouco poeirentas

É esta sensação de dinâmica que os seus vizinhos Quénia e Uganda não transmitem. Ao viajar nestes dois países da África Oriental, a ideia principal que se adquire é que são países parados no tempo, ausentes de objectivos, estagnados.
Neles é frequente encontrarmos os seus habitantes sentados nas bermas da estrada ou apáticos parados nas estradas encostados às bicicletas de olhar vazio literalmente a ver quem passa.
Ou ainda nas aldeias e pequenas cidades estarem deitados nos bancos das suas velhas motas estacionadas lado a lado. Muitas vezes nem sequer conversam com o vizinho. Estão apenas ali.
As suas casas são frágeis, parecendo esqueléticas quase sem forças para se manterem em pé. As estradas fundem-se e desaparecem frequentemente sob a areia, transformando-se em estradas de terra batida irregular e esburacadas. Um massacre para qualquer amortecedor.

Através da janela vejo um memorial ao genocídio de 94 a aproximar-se e sigo a sua passagem com a minha cabeça. Mentalmente salto para ao sudeste asiático e comparo com o genocídio cambojano.
Ambos os países perderam gerações inteiras, ambos perderam muitos homens e mulheres das letras e ciências, gerando um vazio de conhecimento que ainda hoje estão a tentar ser preencher e naturalmente ambos têm profundas cicatrizes internas.

A abordagem aos seus genocídios é feita de maneira diferente. O Camboja aborda de peito e alma mais descoberta o seu sangrento passado.
Os cambojanos falam do seu genocídio com emoção e coração na boca. Contam a qualquer um que queira ouvir as histórias horrendas, muitas vezes contadas na primeira pessoa, que aconteceram nos inícios dos anos 70.
Fazem da prisão Tuol Sleng S21 e dos Kiling Fields espalhados um pouco por todo o país, locais de romaria para turistas visitarem e ouvirem o que esses locais de terror têm para contar.
É como percorrer uma via sacra, vívida e bem detalhada sobre as atrocidades cometidas pelos Khmers Vermelhos.
"Oiçam e contem estas histórias nos vossos países para que não volte a acontecer algo igual" - uma frase ouvida com frequência. Quer da parte dos guias desses locais, quer por parte do cambojano que se cruza connosco nas ruas ou o que nos leva num tuk-tuk a qualquer parte do local onde estejamos.

No Ruanda, não. Há uma certa tensão no ar. Há silêncios nas gargantas e os rostos são mais crispados.
Tirando as crianças exuberantes nos gritos de satisfação, risos rasgados e abanar das mãos numa saudação ampla e alegre, os adultos são francamente mais contidos e mais fechados.
É muito difícil encontrar alguém disposto falar sobre os acontecimentos de 1994 e quando tal acontece percebe-se que é uma conversa com um fim rápido. É um assunto que não vale a pena insistir. É uma ferida que dói e que se sente. É palpável. Ainda sangra
Mesmo no Memorial do Genocídio de Kigali, não existem guias que falem com o assunto. Quem quer fazer uma visita guiada tem que pagar um impessoal audio-guia. Não se houve a história contada na primeira pessoa. As testemunhas, os sobreviventes, contam os seus relatos através de vídeos.

Em Musanze e ao longo das estradas ruandesas, encontram-se aqui e ali pequenos memoriais.
São pequenos e discretos, quase anónimos, cemitérios homenageando os mortos do genocídio.
Mas mais uma vez não se encontra ninguém nos recintos. Ninguém a quem fazer perguntas, ninguém que narre e enquadre os acontecimentos na história local. Não se vêm tabuletas ou letreiros descrevendo o memorial.

Os assassinos que foram apanhados ou confessaram a sua participação no genocídio estão presos e prestam trabalho comunitário. A sua condição salta literalmente à vista.
Quando saem à rua estão vestidos da cabeça aos pés com uma espécie de pijama de cor rosa choque. É impossível não dar por eles. Estão algemados, acorrentados e escoltados por guardas armados.
Cruzei-me com um grupo deles em Musanze.
Tinham um ar aparentemente descontraído. Pareciam divertidos, quase insolentes.
As pessoas que se cruzavam com eles, não gritaram, não os insultaram e não tentaram agredi-los. Algumas olharam brevemente e continuaram a sua vida, outras pararam mesmo. Mas os olhos de todas elas disseram tudo. Ainda não há perdão.

Talvez se perceba esta diferença de atitude entre os dois países. No que respeita ao Camboja, já passaram cerca de quarenta anos. No Ruanda o sangue ainda corre, a cicatrização é um processo em curso. Menos de vinte anos passaram sobre o macabro ano de 1994.
E se no genocídio cambojano houve motivos políticos por trás, mantendo-se assim a integridade social do Camboja, no Ruanda por seu lado, houve uma fortíssima clivagem social. Os motivos foram étnicos.
Uma parte da população tentou verdadeiramente exterminar a outra.

O tempo tudo cura, diz-se, mas em certos casos, é preciso que o tempo se acumule ao tempo para que as memórias sejam suavizadas e as dores de alma mais dóceis de suportar.
O Ruanda bem que precisa desta acumulação. Acredito que sejam precisas bem mais que duas ou três décadas para que este país africano, encontre uma verdadeira paz no interior da sua alma colectiva e solte de vez os sorrisos escondidos.


De novo com a cabeça encostada ao vidro da janela meio entreaberta e embalado pelo roncar do motor, os meus olhos fecham-se à mesma velocidade que os quilómetros passam por ela. Len-ta-men-te.







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