Hué, Vietname - no Reunification Express


Viajar de comboio é sempre uma grande experiência seja onde for. No Vietname não é excepção.
É um meio seguro, fiável e barato de viajar.
A linha ferroviária que liga a capital Hanoi, no norte, a Saigão, no sul, é vulgarmente conhecida pelo Reunification Express. Esta linha foi originalmente construída pelos franceses durante o seu tempo de ocupação no Vietname. 

Com a Guerra do Vietname, o país ficou dividido entre Vietname do Sul e Vietname do Norte e esta linha ficou cortada.
Quando em 1976 os dois países se reunificaram e o comboio retomou a ligação entre as duas grandes cidades do norte e do sul, ele ganhou o nome de Reunification Express
Nome esse que ainda hoje perdura apesar de serem vários os comboios que actualmente fazem essa ligação.
Era esta a linha que me iria levar de Hanoi para Hué, a meio caminho entre o norte e o sul.



Faltava cerca de meia hora para o comboio overnight partir de Hanoi para Hué. Dez, doze horas de viagem.

Quando corri a porta do pequeno compartimento, vi quatro beliches. Dois de cada lado, um em cima do outro.
Uma única e suja janela em frente à porta de entrada iluminava o compartimento com a luz do final do dia.
Por baixo deste uma pequena mesa desdobrável tinha como cortesia quatro pequenas garrafas de água e outros tantos pacotinhos de bolachas.
Junto ao tecto a todo o compartimento do mesmo, uma pequena prateleira encastrada permitia colocar algumas coisas lá em cima e assim poupar espaço nos estreitos beliches.

Já lá estavam duas jovens. Tinham ocupado os dois beliches de cima. Tinha de ficar com os beliches de baixo. Calhou bem. É onde gosto ficar. Permite movimentar-me, entrar e sair sem perturbar ninguém.
A minha mochila mais pequena ficou em cima dele e a maior entre o chão e o beliche.

A Claire e a Georgia viajavam juntas. Duas “aussies”. Eram australianas e vinham de Hobart, a capital da ilha da Tâsmania.
Tinham as duas a mesma idade, vinte e três anos, e tinham acabado de tirar o curso de assistentes sociais.
Inicialmente eram rivais, mal se falavam. Mesma escola, mesmo percurso escolar, turmas diferentes. Implicavam uma com a outra.
Uma vestia-se mal, a outra era peneirenta. Uma tinha melhores notas, mas a outra dava mais graxa aos professores, mesmos amores e desamores, popularidade e por aí fora.
Um dia, um click. Passaram as duas para o mesmo lado da barreira e redescobriram-se. Tornaram-se inseparáveis.

Estavam num período sabático. Aquele limbo da vida que muitos estudantes de países anglo-saxónicos, nórdicos e germânicos sabem aproveitar tão bem.
Entre o mundo universitário que estava já para trás e a entrada no mercado de trabalho que começava a surgir pela sua frente, viajavam. Abrir horizontes.

O objectivo é igual a cada um de nós que sai do conforto do seu quintal para se aventurar no desconhecido. É a busca de encontros com outras culturas e línguas, outros sabores, cores e experiências de vidas diferentes.
É um acumular de sabedoria universal, de lições de resolução de problemas, de adaptação e flexibilidade a novas situações que as estritas e rígidas escolas e universidades não ensinam e são incapazes de o fazer.


Elas estavam no Vietname há cerca de três semanas.
Planeavam ficar mais uma semana e de seguida iam fazer voluntariado de três meses numa ONG de órfãos em Siem Riep no Camboja.
Juntar o útil ao agradável. Ouro sobre azul. A descoberta de um novo país, a introdução ao futuro trabalho e simultaneamente fazer a diferença positiva num país tão carenciado nesta área como o Camboja.

Geórgia tinha cabelo castanho claro, com olhos azuis intensos, extrovertida e baixota. Era uma palradora inveterada. Ria e fazia rir, falava e dava que falar.
Claire era loira, tez pálida, também olhos azuis mas suaves. Mais bonita, mas não tão extrovertida quanto a sua companheira de viagem, era uma fonte inesgotável de risinhos, toques e encostos nos ombros.
As duas eram inseparáveis como a unha com carne e perpetuavam o eterno mistério de duas mulheres irem sempre juntas para a casa de banho.

Tu Vhoc chegou mais tarde, quase em cima da hora de partida. Era o quarto passageiro que faltava naquele compartimento. Era um local, um vietnamita.
Simpático e como quase todos os asiáticos tinha o cabelo preto, pele escura e sorriso discreto mas fácil.
Ia para Hué para ir passar uns dias em casa dos avós. Os seus pais dedicavam-se a plantar arroz no norte do Vietname, na região montanhosa de Sapa, famosa pelos seus arrozais em terraços.
Estava a estudar turismo e inglês. O seu objectivo era trabalhar como guia de grupos durante algum tempo, "ganhar bom dinheiro" nas suas palavras e depois investir na hotelaria em Hoi An.

O turismo é visto como uma bóia de salvação para sair da mediania social vietnamita. No Camboja tinha sido o mesmo. Em ambos, o esforço de alfabetização, de incentivar os putos a irem para a escola, aprender ofícios e acima de tudo aprender inglês era notório. A aproximação das pessoas aos turistas, meter conversa connosco apenas com duas ou três frases inglês era vulgar.
Para todo o sudeste asiático, o turismo é uma indústria que permite sonhar com o desenvolvimento e modernização.
É também uma maneira de ultrapassar as violentas cicatrizes e sequelas que o violento passado histórico desta zona do planeta deixou nos seus países.

O comboio estava em movimento já há algum tempo. Lá fora o crepúsculo já tinha passado e a noite imperava. A paisagem era completamente indistinta confundindo-se com a escuridão.
As conversas tinham amainado. Todos estávamos deitados nos nossos beliches. A letargia tomava conta do acanhado compartimento.

Tu Vhoc ao meu lado direito mandava mensagens. As australianas lá em cima continuavam a falar mais calmamente enquanto partilhavam um pacote de Oreos.
Eu com os pés em cima da minha mochila, estava deitado a folhear um livro com fotografias de Hanoi que o meu companheiro asiático me tinha mostrado. Todas elas tinha sido tiradas por uma fotógrafa ocidental cujo nome não recordo. Mostravam Hanoi por temas.
O trânsito cacofónico, os milagres equilibristas com pilhas enormes para transportar o quer que seja que nas lambretazinhas, a comida de rua, os vendedores ambulantes, casamentos, a vida nos parques do amanhecer e do final do dia, os segredos escondidos nas ruelas da capital.


Gritinhos intensos e sucessivos fizeram-nos saltar dos beliches. Geórgia de olhos esbugalhados apontava para o tecto onde uma barata estava parada. Em menos de nada com um chinelo e de olhos fechados tenta acertar nela.
Evidentemente falha e a barata rapidamente desaparece de vista. As australianas prontamente tinham saltado cá para baixo. O passo seguinte era óbvio. 
Eu e o vietnamita, cavalheiros que honram os seus países, trocamos de lugares com elas e vamos para os beliches de cima.
Geórgia e Claire acalmam-se, põem o que sobra das Oreos em cima da mesa desdobrável e deitam-se, sussurrando uma com a outra sobre a “gross” e "disguting" barata.
Devolvo o livro a Tu Vhoc, desligo o frontal e fecho os olhos.
Pela segunda vez a calmaria desce sobre nós.


Amanhecera. Acordo com a luz a entrar de novo pela janela e com as australianas na conversa. 
O vietnamita já tinha saído. Salto para o chão com cuidado. Doía-me a cabeça. A noite não tinha sido bem dormida.

No corredor algumas pessoas conversam. Cruzo-me com uma americana, a Cathy de Washington e um alemão de Colónia, o Thomas.
Descobrimos os que estamos o três na mesma rota. Hanoi, Hué, Hoi An e depois Ho Chi Minh City, Saigão na antiga designação e ainda a mais usada entre quem viaja e pelos próprios vietnamitas.
No entanto os timings entre nós são diferentes e não os voltaria a ver.

Mais gritos das australianas. Aquele compartimento é único naquele comboio. Era a segunda vez que atraia as atenções de quem viajava naquela carruagem
Desta vez apontavam para o pacote de Oreos que estava na mesinha e algumas migalhas que estavam espalhadas sobre ela.
"Mice, mice, mice!!!" - gritava Georgia e de dedo apontado às migalhas. Claire estava encolhida no canto oposto ao da mesa como se ela estivesse infectada com peste bubónica.
No entanto parecia-me pouco provável que tinham sido ratos e brinco com a situação.
"Foi a barata que trouxe a família e tomou o pequeno-almoço"

No entanto o dedo continuou em riste apontando firmemente para as bolachas mas sem tocar nelas.
Aproximando-me mais e com atenção vejo marcas certinhas, alongadas, típicas de dentes de roedores no creme branco das Oreo. Parece que sempre tinha razão. E quando limpei a mesa, para que finalmente se aproximassem dela, reparei que as migalhas não eram só migalhas...



as Oreos roídas



Georgia sentada já com a mesa arrumada




















Boa!!! Contente dei os parabéns aos roedores. Foram silenciosos e encheram a barriga. Tiveram um pequeno-almoço de rei. Cinco estrelas para eles.


Duas australianas, um vietnamita, uma barata e pelo menos um rato. Todos num único compartimento de comboio. Grande companhia.
O melhor comboio overnight da minha vida e também a maneira mais divertida de chegar a Hué.


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