Hué, Vietname - o Adidas e o iPhone

Um jovem alto e esguio montado numa scooter esperava-me na margem do rio Perfume, para dar uma volta pelos arredores rurais de Hué. Era esta a parte que mais esperava do dia.

Sabia pela experiência que tinha tido no Camboja que uma volta nestas motoretas aos campos que estão nas periferias das cidades me traria experiências e vivências únicas.
Eles encerram muitos segredos e cantos escondidos que só os locais conhecem.
Os modos de vida são sempre mais genuínos e simples. Há uma pureza neles que ainda não está contaminada pela cidade, pela modernidade e pela ganância que o dinheiro do turismo traz.


Nunca soube o nome do meu guia e propositadamente não lhe perguntei.
Dirigiu-se a mim jovialmente, cumprimentou-me com o à vontade de um high five sonoro e vigoroso de velhos amigos e depois foi directo às alcunhas.
Eu era o Adidas, e ele o iPhone. Rasguei um sorriso. Tinha percebido a origem das alcunhas.

Estavam escritas nos capacetes pousados sobre os assentos da pequena vespa.
Adidas, um capacete branco de letras douradas decalcadas no casco foi-me estendido com as duas mãos, enquanto ele já segurava o iPhone, um capacete preto com letras brancas igualmente decalcadas por baixo do braço.




Até chegar à calma campesina dos arredores de Hué, a adrenalina haveria de inundar várias vezes o meu corpo. Circular, ultrapassar, virar para ruas e cruzamentos sem aviso ou sinais de mão, cruzar perpendicularmente e sem aviso prévio, ruas com carros, motas e bicicletas a circularem nos dois sentidos e tão próximos de mim que lhe podia tocar, valeu por tudo.

Queria mostrar que estava à vontade, bem equilibrado e descontraído lá atrás. Mas sem grande sucesso. Os meus dedos estavam brancos de segurar com toda a força os apoios traseiros da minha motoreca enquanto o meu tronco dava súbitos e instáveis solavancos cada vez que ele acelerava bruscamente como se estivesse a montar um cavalo selvagem pela primeira vez ou um avião a atravessar uma zona de forte turbulência sem o cinto apertado.
Senti que não estava a fazer um bom serviço à Adidas. Imaginei que por minha causa, o desgraçado do meu guia se arriscava a ficar sem o patrocínio desta marca alemã no seu capacete.


Uma primeira paragem naquela cavalgada urbana numa loja perdida e isolada na beira da estrada. Os objectivos eram comerciais. Comprar água, beber uma cola ou uma cerveja fresca. Ver a loja onde também se faziam lanternas de papel de cores bem vivas e eventualmente comprar uma, pinturas de motivos vietnamitas quaisquer que eles fossem e de novo talvez comprar uma, e por fim assistir a uma jovem muito bonita a fazer em piloto automático dezenas de paus de incenso de cores tão vivas como as lanternas. Vermelhos, amarelos, roxos, verdes.
No final de cada dia de trabalho após várias centenas de paus de incenso feitos ganhava uns escassos três euros.







Mais uma injecção de adrenalina. Mais cruzamentos, mais caos, viragens absurdas, muita buzinadela.

A velocidade abrandou. O asfalto rápido e a adrenalina da condução davam agora lugar a estradões mais ou menos irregulares de terra batida, alternando com trilhos mais estreitos ladeados com plantações de arroz e outras culturas. O lado rural de Hué estava à minha frente.

O azul brilhante do céu imaculado e o verde exuberante dos campos de arroz fundiam-se na lonjura quente do horizonte. A paisagem ondulava na distância com o calor que estava.
Arrozais extensos de verdes intensos com pessoas a trabalharem neles, um pequeno rio, canais de irrigação, templos budistas, um deles em construção e algumas casas simples surgiam aqui e acolá, formando pequenas aldeias estavam agora a passar ao meu lado.
A quietude imperava e prosseguia-se agora com mais calma.

Uma das actividades que outrora floresciam no Vietname rural e que a modernização estava a fazer desaparecer estava à frente dos meus olhos.
Faço um sinal ao iPhone para parar em cima de um viaduto. Um pastor de patos passava por baixo dele. Uma visão inusitada e muito inesperada para um ocidental.

De pé numa esguia canoa e apoiando-se numa longo varapau, um ancião de chapéu cónico vietnamita orientava várias dezenas de patos ao longo de um braço de um rio.
Como um pastor com o seu gado no pasto, este senhor com a canoa e ajuda do pau encarreirava e guiava os patos na direcção certa.





Os patos mais renitentes sentiam os salpicos da água nas suas asas quando o pau batia na água próximo deles e alguns gritos mais incisivos apontavam o caminho certo para os mais rebeldes e distraídos.
Fascinado fiquei a ver este pastor de patos a fazer o seu trabalho ziguezagueando para esquerda e para a direita. Era uma breve paragem no tempo. Para os próprios vietnamitas já não era muito vulgar aquela visão.
Um momento raro e surreal para quem pastar significa prados, um pastor de cajado, badalos, gado caprino e bovino a ruminar e um par de cães a ladrar e a morder as canelas a quem sai fora do rebanho.
Retomámos o caminho e continuámos sem pressa por aquela paz.

O vento a bater no rosto enganava a sensação de calor. Nos campos de arroz fazia-se a colheita. Algumas cabeças levantavam-se curiosas e acenavam à nossa passagem, outras mantinham-se fixas no solo onde com as costas curvadas apanhavam o arroz e o organizavam e arrumavam em pequenos feixes.
De solavanco em solavanco o iPhone e a irregularidade do piso levaram-me até a uma pequena aldeia perdida no meio dos arrozais.




Tinha um mercado bom para comer qualquer coisa. Fruta, umas bolachas e muita água.
Um pequeno museu de porta e janelas aberta de par em par onde uma senhora muito solicita mostrava tudo o que se relacionava com o quotidiano quase desaparecido da vila. O arroz, a sua apanha, a separação da casca, antigos instrumentos de madeira, o berço de embalar as crianças, as cantigas e preces das mulheres do campo.
Era uma actriz polivalente e empenhada que encarnava todas as personagens do museu.
Saltava de papel em papel, de rotina em rotina, desempenhando com afinco um filme de um quotidiano já quase desaparecido. Uma ingénua tentativa de preservar algo que inevitavelmente cairá no esquecimento.
Possivelmente apenas os poucos viajantes que se aventuravam nas pequenas scooters até aquelas franjas da cidade de Hué financiavam com os seus euros e dólares aquela senhora e justificavam o museu aberto.

E finalmente uma ponte coberta onde uma pitonisa octogenária muito bonita e de cabelo grisalho e sorriso encantador espalhava, por uns quantos dongs a felicidade lendo a palma da mão a quem queria ouvir o que desejava.
Ser mãe, as melhoras da irmã ou do filho, o encontro com o homem ou mulher dos nossos sonhos, a promoção no emprego, a concretização de uma viagem sempre adiada, um prémio chorudo que haveria de chegar em breve ou um casamento com alguém carregado de dinheiro.

Pelo sim e pelo não guardei as palmas das mãos dentro dos bolsos quando passei por ela.


 


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