Hué, Vietname - o Tao de Hué

Hué é uma cidade pacata de cerca de 340 000 habitantes com uma identidade muito vietnamita.É atravessada pelo Rio Perfume que a divide em dois.
Do lado sul estão localizados os hotéis, restaurantes, a parte renovada da cidade. Do lado norte do rio está a vertente histórica de Hué com a cidade velha e a Citadela.

É também possuidora de uma forte identidade cultural e histórica. Carrega nos seus ombros o legado dos últimos tempos de um Vietname feudal e imperial.
A sua história é bem patente na citadela, na sua cidade proibida, nos túmulos e templos imperiais da dinastia Nguyen que podem ser vistos na periferia da cidade.
 Foi entre 1802 e 1945 a capital do Vietname, ano em que o último imperador, Bao Dai, abdicou e o regime comunista liderado por Ho Chi Minh estabeleceu-se na actual capital, Hanoi.


Como usualmente no sudeste asiático o dia a dia flui sem pressa, sem sobressaltos ou ruídos excessivos, para além da surdina das buzinas, que é muito mais um ronronar que um ruído.
A rotina diária desenvolve-se nas ruas. É transparente e sem segredos. Caótica, mas organizada.
Tem as suas portas abertas par em par e tem uma banda sonora muito própria. Reparação de motas e bicicletas, cortes de cabelo, padarias, comida de rua, pequenas mercearias, lojas e galerias de arte, gatos errantes que andam pelos muros e pássaros pendurados nas janelas.




Pequenos mercados cheios de vida eram montados ao longo dos passeios em algumas ruas durante a manhã e depois desapareciam ao início da tarde para tudo se repetir no dia seguinte.

Um bar muito conhecido, o Brown Eyes, afirmava no letreiro que abria às cinco da tarde e que só fechava quando a última pessoa caísse para o lado.
Não sei se seria assim, mas pelo menos por duas vezes às duas da manhã ele ainda bombava.
Com uma população frequentadora metade local, metade turística, é um daqueles bares que se encontram muito por aí.
Interior de paredes despidas mas grafitada com motivos suburbanos, pessoal amigável e divertido, vários jogos de tabuleiro à disposição - xadrez e damas não incluídos ;) - renovação quase infinita de pratinhos de amendoins e batatas fritas, música ocidental variada tipo Offspring, Green Day, Sting, REM e por aí fora condimentada com luzes ultravioleta, mesas altas de madeira e cadeiras de madeira de longas pernas.




Nas happy hours servem duas bebidas iguais à escolha pelo preço de uma... mas ao mesmo tempo.
O que significava que me via a braços com dois super clássicos gins tónicos ou os mais gourmet black russian iguais na minha frente. Bebia um e ficava a ver o com gelo a derreter à minha frente. Um inconveniente que resolvia bebendo os dois rapidamente, mas que ficava apenas adiado porque voltava a fazer o mesmo pouco tempo depois. Problemas injustos da noite de Hué ;).

Descer o rio Perfume, dar uma saltada ao pagode budista de Thien Mu, um enorme edifício de sete andares de forma octogonal, subindo a inclinada e intensa escadaria da colina Ha Khe, é um clássico de Hué.






Cumpri a "formalidade". Assisti a uma cerimónia budista que estava a decorrer e regressei ao sonolento barco que me tinha levado para lá.
Era fechado com uma espécie de gaiola envidraçada e um interior espartano. Parecia um acanhado e despido salão de baile sem ninguém para dançar.
Apenas uns poucos bancos de madeira corridos no seu interior e num canto estava uma banquinha com uma mulher sentada junto dela.
Tinha t-shirts, bebidas frescas, bugigangas pirosas e artesanato vietnamita para venda.
Viu-nos a entrar, sem entusiasmo tentou impingir umas latas de refrigerantes e depois as bugigangas. Considerou a obrigação cumprida, desligou os olhos do grupo e foi à vida. Tricotar.


A proa era formada por dois dragões. Dois enormes e altaneiros focinhos de dragão, um pouco maltratados, batidos pelo sol, de escamas vermelhas e pintados de um amarelo que não deixava dúvida quanto à antiga intensidade da sua cor. Os olhos eram duas reluzentes esferas metálicas, dentes brancos bem arreganhados e aguçados e com uma língua de fora, também ela pintada de vermelho tornavam o barco amigavelmente ameaçador.
Destinavam-se a afastar o mau olhado, os demónios, os espíritos negros.

Outras proas, talvez mais modestas, com donos de menos posses, ou com uma menor necessidade de afastar demónios, exibiam apenas um focinho.




Invariavelmente estava na proa entre os dois dragões. Ela transmite-me sempre aquela sensação de liberdade, de espaços abertos, de ver o horizonte a chegar. Simultâneamente permitia apanhar a brisa que aliviava o calor que se fazia sentir e ainda apanhava com alguns salpicos de água no rosto.

Do lado esquerdo uma fileira de esculturas de flores de lótus de um rosa intenso iam passando à vez por mim. Todas elas igualmente espaçadas pelo rio fora como se tivessem sido mecanicamente semeadas na água sem ter que esperar pelo seu crescimento.
Barcos cruzavam-se com o meu por todos os lados.




O barqueiro já tinha virado várias vezes a cabeça na minha direcção. Estava claramente curioso por me ver ali.
Com um sorriso e por gestos pediu para me aproximar e sentar-me ao seu lado. Tinha um inglês surpreendentemente razoável.
Tocou no peito com a mão direita e apresentou-se.
- Sou o Tao. Acrescentou - De Hué. E tu?
Apresentei-me da mesma maneira.
- Chamo-me Pedro.
- Ok, ok.
- De onde vens?
- Venho de longe, do lado do Atlântico, Portugal.
- Fica em Espanha?
Abri bem os olhos com uma expressão pretensamente ofendida e esclareci:
- Não, não!!! Somos vizinhos mas somos de países diferentes. Tal como vocês e o Laos, ou vocês e o Camboja.
- Ah, ok, ok. Também têm rios como este, o Perfume?
- A cidade de onde venho, Lisboa, a capital de Portugal, é atravessada por um rio também grande que nasce em Espanha, chama-se Tejo e no norte existe um outro grande chamado Douro.
- A propósito como surge o nome Perfume?
Estava curioso sobre a sua origem.
Tao virou-se para mim com os olhos a brilhar. Ao fim e ao cabo era o seu rio, o seu orgulho.
- O nome vietnamita é Huong Giang. Nasce quase a 80 km da cidade. No trajecto até Hué ele passa por diversas florestas e flores que vão deixando cair as suas folhas e pétalas nele, passando assim para as suas águas os aromas e perfumando-o.
Sorri. Tinha gostado da explicação. Era bonita.
O barqueiro continuou.
- Vocês têm pagodes nos vosso rios?
- Não. Portugal é um país esmagadoramente cristão, não tem pagodes. Temos catedrais, igrejas e capelas.
- Ok, ok. E o que há em Portugal para ver?
- Muita coisa boa. Temos sol e praias. A nossa comida é óptima e as pessoas são tão simpáticas como vocês.
O barqueiro ouvia-me com atenção, virando de vez em quando a cabeça para mim. Continuei.
- Também temos castelos, paisagens e cidades bonitas e muitas tradições antigas para conhecer.
- Ok, ok. És o primeiro português que conheço. Não costumam viajar?
É uma frase que ouço com frequência.
- Viajamos mas não muito. Os portugueses em geral vão para outros sítios. Para as praias cubanas, mexicanas, egípcias. Vão para a Republica Dominicana, para a Tunísia. E alguns também vão para Tailândia mas não muito mais que isso.
- Ok, ok.

Desta vez Tao não continuou a conversa. Com os olhos bem fixos na sua frente, ele manobrava o barco para a margem.


Comentários