Transiberiano, Rússia - o primeiro degrau


Na essência, uma estação de comboios e um aeroporto são o mesmo lugar com a mesma filosofia.
Está-se em A e quer-se ir para B e há uma hora marcada para que tal aconteça..
Enquanto isso, ou se espera mais ou menos calmamente ou se caminha mais ou menos apressadamente para onde supostamente devemos estar.

Mas há uma democraticidade e autenticidade numa estação de comboio que não existe num aeroporto.
O segundo é mais formal e de alguma maneira é igualmente elitista. Voar implica capacidade financeira. Implica determinação, pressa ou urgência.
Quem vai de avião vai com a vida separada de si. Ela é contida. Não a traz consigo, não a carrega, não a mostra. O mais importante da nossa vida num avião vai no porão.
Tudo é arrumado e empacotado. As pessoas são encarreiradas. As pessoas são sentadas. As pessoas são agrupadas e confinadas.
É um espaço frio e impessoal. Há espaços definidos para isto e para aquilo. Há corredores. Há regras. Os que vão para ali é pela esquerda, os que vão para acolá vão pela direita.
E até se sabe o tempo que demora a chegar ao destino.


Gosto deste caos


Numa estação de comboio usualmente não há pressa. Implica disponibilidade. É um querer, uma opção, uma alternativa. É frequentemente um desejo.
“Vou de comboio” por oposição ao “Tenho que ir de avião”.
A vida de cada um aqui é visível e bem genuína. Andamos com ela. Estamos impregnados com ela. Cheira-se, ouve-se e toca-se nela.

Existe nas estações de comboios um caos que funciona muito bem.
Não há carreiros ordenados de formigas, há montinhos delas. Aqui e acolá. As bagagens estão espalhadas e amontoadas um pouco por todo o lado. Zigagueia-se por entre as pessoas.
Por vezes é um “com licença” ou um alternativo e mais completo “com licença por favor” que abre caminho através delas.
Não se caminha em uma ou duas direcções mas em todas as direcções.
A distância mais curta entre dois pontos numa estação de comboios raramente é uma linha recta.


Foi este movimentado e colorido caos que encontrei quando entrei na bem iluminada pela suave luz natural que entrava pelas clarabóias do tecto da estação Kazansky de Moscovo.
É inevitável. Quando se fala de transiberiano, qualquer que seja a sua rota, esta começa ou acaba numa estação de comboios em Moscovo. Não se viaja nas rotas dos transiberianos sem antes visitar a capital russa. É uma cidade charneira nesta viagem. É aqui ele mais pulsa, é aqui ele é mais intenso e vivido.

Chego sempre (muito) a tempo a tudo o que tenha horas marcadas. Passei pelas portas de controlo com detectores de metais que apitam quase em contínuo e polícias que não controlam nada, indiferentes aos inúteis avisos dos detectores.
Entrei na gare e procurei o placard das informações. Estava por cima das bilheteiras e não havia sinais do comboio 118. Era cedo e ainda não tinha linha atribuída.

Tal como os seus acessos, ela estava cheia de pessoas, cheia de bagagens e cheia de vozes que falavam alto. Muitos dedos apontados para todos os lados. Para os placards de informação, para as linhas, para as bilheteiras ou para mostrar à distância a alguém que ou está no sítio certo ou no errado, para não se pisar uma mala, definir um ponto de encontro.

Gosto destes ambientes caóticos. Fazem-me sentir vivo. Fazem-me sentir fora de casa, o que para quem viaja é precisamente o que procura e espera encontrar.
Dispus-me a esperar. Em pé com a mochila no chão encostada aos meus pés, senti e absorvi aquele ambiente.
Havia sempre alguém a comer, a falar alto, a abraçar-se ou alguém pregado ao chão a olhar para o ecrã das informações às espera da indicação de uma linha que tardava em ser dada. Carregavam-se televisores e cobertores, cadeiras, maços de tabaco debaixo dos braços. Tudo entrava e tudo se encontrava naquela aquela estação.
Todas as pessoas carregavam algo. Ou nas costas, ou nas mãos, ou de ambas maneiras.
O pequeno quiosque quase no meio da estação não tinhas mãos a medir. Filas para comprar bebidas, noodles, iogurtes, gelados, pão, bolos, sandes, sumos ou água.
Quem vai ao mar avia-se em terra, diz o ditado. As grandes distâncias ferroviárias preparam-se nas estações de caminho de ferro.

Eu estava igual a todos os outros. Carregava a minha vida das próximas três semanas nas minhas costas, mais a alimentação em dois sacos plásticos para os próximos quatro dias.




Próximo de mim estava um senhor de bigode cinzento escuro e cabelo branco desgrenhado com ar de quem tinha acabado de acordar. Estava de fato e casaco escuro roçado pelo tempo e pelo uso. Parecia alheado ao que se passava à sua volta e de pé apoiava-se com o braço na sua volumosa bagagem. Uma boa parte da sua vida devia estar empacotada naquelas grandes malas.
Noutro lado, um pai e uma filha esperavam por alguém. Talvez pela mãe. Ela sentada numa mochila, ele em pé de braços cruzados ao seu lado. Três jovens russas tiravam à vez fotografias do trio com cada um dos seus telemóveis e um casal de namorados estava em pé ao lado um do outro. Ela descansava a cabeça no ombro dele enquanto o enlaçava com o braço esquerdo..

Havia quem lesse o jornal em pé e quem almoçasse em cima das bagagens num pic nic improvisado e sem privacidade e quem nervosamente percorresse a plataforma várias vezes para trás e para a frente como que à procura de uma linha que não existia mas para a qual sabia que tinha que ir.





O primeiro degrau


As minhas coordenadas GPS já estavam completas. O placard, mostrava agora para o comboio 118 a linha 1. Era a mais à esquerda da estação e tornou-se uma das mais activas, assim que a linha foi conhecida.

A plataforma é estreita e parte dela está em obras. Não é fácil circular por entre tábuas, tijolos, placas por assentar, carrinhos de mão tombados, zonas vedadas e ao mesmo tempo carregar mochilas e sacos nas duas mãos no meio de uma massa humana compacta..

Alguns passageiros mais apressados passam por mim a correr. Sofro alguns encontrões valentes com as suas malas. Faz parte da vida. Procuro e encontro a carruagem 16.
A provinitza, cá fora, à entrada da porta, confirma o meu bilhete e faz sinal para eu subir.
Avanço. Por uns breves segundos, o meu pé direito fica apoiado no primeiro degrau e o esquerdo ficou no chão. Sinto aquele primeiro rugoso degrau de ferro com um misto de ansiedade e de incredulidade.
Um pequeno passo para o Pedro, um gigantesco salto para a história do Pedro.

A viagem que eu pensava que gostaria de fazer mas que não acreditava que um dia a fizesse estava apenas a mais dois degraus de se concretizar.
Quando o meu pé esquerdo subiu, o direito pisou o degrau seguinte sem hesitação, seguido de novo pelo esquerdo.

Foi com alguma dificuldade que as duas mochilas mais os dois sacos passaram pela estreita porta que dava acesso ao corredor, também ele estreito, da carruagem 16.


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