Transiberiano, Rússia - cinco dias, quatro noites


Escolhi a cama 32, a do lado direito de quem entra no compartimento 8. 
Atirei lá para cima a mochila da máquina fotográfica e um dos sacos de plástico com as coisas para comer.
Já antes tinha feito a cama com os dois lençóis e o cobertor que estavam razoavelmente bem dobrados dentro de um saco de plástico transparente razoavelmente em bom estado.
O segundo saco foi para debaixo do beliche inferior e a minha mochila grande como não cabia nos alçapões destinados para elas, ficou atravessada no topo do compartimento por baixo da pequena mesa de apoio.
Da mochila da máquina, para além dela, tirei o meu livro de viagem, a caneta e o bloco de notas.







Começou!


Fui para o corredor, puxei para baixo uma das poucas janelas que abriam na carruagem e debrucei-me sobre ela. Observava a azáfama das linhas cujos comboios chegava ou partiam. O caos das bagagens, da entrada e saída das pessoas, dos abraços de despedida, de chegada ou de partilha.
Como o caso de quatro belgas que se abraçaram todos antes da entrada para comboio. Um ritual de passagem, de iniciação.
Quem faz esta viagem tem um. Mesmo que não saiba. Um suspiro, um fechar de olhos, um simples sorriso, entrar com o pé direito, um "finalmente!" dito em silêncio" ou fechar por uns segundos os olhos.
À janela assisti a todos estes rituais. Também tinha tido o meu pouco antes.

Faltavam agora talvez dez ou quinze minutos para a partida do comboio e até Irkutsk faltavam cinco dias e quatro noites.
Na parede do corredor uma quase inútil (toda em russo) tabela de horários informava as estações, os tempos de paragem e a hora de chegada a elas.




Um apito. Um soluço de arranque seguido de uma hesitação, mais outro soluço e depois um rolar lento e regular e a acelerar aos poucos e poucos.
As primeiras dezenas de metros de uma viagem de quase 8000 km estavam ser percorridas.
Entrei no meu compartimento e abri uma garrafa de vodka brindando à viagem. Um cerimonial que repetiria todos os dias da minha viagem, mesmo os que passaria fora do comboio.

Em Roma sê romano, Na Rússia sê russo, logo bebe vodka. Abri a garrafa e saudei o início da mãe de todas as viagens com uma longa golada que me fez chorar os olhos e quase engasgar-me. A vodka era das melhores que beberia a partir dessa altura. Forte, mas suave e muito aromática. O início da viagem estava comemorado e oficializado.



Taiga, taiga, taiga...


À medida que saíamos da influência urbana de Moscovo a paisagem começou a mudar. E depois não mudaria mais.
A famosa e densa taiga russa iria durar desde a saída de Moscovo quase até à entrada na Mongólia, atravessando toda a Sibéria.
A mítica Sibéria, um gigantesco vazio no mapa russo é conhecida pelas muito baixas temperaturas invernais e pelos seus gulags, campos de trabalho forçados da era Estaline entre os anos 30 e 50 do século passado.
Geograficamente poderia ser o maior país do mundo. A sua extensão é tal, que é superior à soma das áreas conjuntas dos Estados Unidos com a Europa.
Ela era o destino para todos os que não alinhavam pelo poder político dominante na altura, ou cujas ideias, ideais, escritos ou não eram consideradas perigosas para o regime vigente .
Os exílios nestes campos representavam para muitos, dadas as condições de vida neles e a hostilidade do inverno, um bilhete sem regresso, um ponto sem retorno.

A Sibéria é pontuada aqui e acolá por pequenos povoados com casas e cercados feitos de madeira e algumas poucas cidades. De lá extrai-se o madeira, carvão, diamantes, gás natural e cerca de 80% do petróleo russo. O tráfego ferroviário que se cruzava connosco mostrava isso mesmo. Frequentemente os comboios que passavam por nós, eram de mercadorias. Longos, alguns deles com 70 ou 80 vagões contados.




A atenção dos líderes russos está cada vez mais apontada para a Sibéria. Nela vêm a oportunidade de recompor financeiramente o país. No médio prazo tornar-se-à uma zona fortemente estratégica para este país e certamente e infelizmente destruída também.


A taiga siberiana é quase totalmente dominada por pinheiros silvestres, faias, abetos e bétulas.
São árvores coníferas cujas copas cónicas e folhas persistentes em forma agulha que não facilitam a acumulação de neve e são revestidas por uma espécie de cera com o objectivo de dificultar a congelação da água no inverno e a sua evaporação no verão. As baixas temperaturas siberianas e o permafrost não permitem uma grande diversidade de fauna e flora.

São quase cinco dias com sensação de ter um disco riscado visualmente. Uma gigantesca cortina visual de quase 5900 km, até próximo da fronteira, Ulan-Ude, com a Mongólia, bloquearia a visão a uns dez metros da janela do comboio. Monótona mas inexplicavelmente não cansativa.




É hipnotizante ver um padrão a repetir-se indefinidamente durante tanto tempo. Parece que somos drenados, esvaziados e diluídos naquela longa, indistinta e interminável paisagem.



A relatividade do tempo


Muitas vezes me perguntam como se consegue passar tanto tempo dentro do transiberiano. Como se aguenta a monotonia do tempo, a clausura quase conventual das janelas e dos corredores estreitos. A resposta não é fácil dar ou é sequer convincente.
É preciso querer. É preciso gostar das longas distâncias. É preciso gostar de andar de comboio, é preciso gostar do comboio. É preciso sentirmo-nos nele como uma segunda casa.
É preciso gostar daquela banda sonora de percussão metálica, seca, bem ritmada dos rodados nos carris por vezes milimétrica, por vezes previsível ao segundo.

A distância e o tempo e com ele os fusos horários, correm, passam, fluem, lado a lado, em paralelo com os carris, tão longos quanto o tempo e a distância que eles carregam nas suas costas.

Há uma mística enorme em tudo o que o rodeia, mesmo que esse tudo seja o mesmo que em outra qualquer viagem de comboio.
O tempo passa-se sentado a ler, deitado a ler, à janela a ler. Dormita-se, Conversa-se com os companheiros do compartimento e dos outros compartimentos. Escreve-se as notas de viagens para quem as tira. Vive-se da paisagem emoldurada pela janela.
É uma viagem introspectiva, uma viagem pausada, abrandada, em câmara lenta ao nosso eu. É essa a vantagem do comboio, o tempo desacelera-se no correr dos carris. No transiberiano não há pressa. Não pode haver pressa. Se não, não se pode ir nele. É contra a sua natureza.

 As paragens acima de dois a três minutos, usualmente vinte e por vezes chegam aos trinta e cinquenta minutos são bem vindas. Serve para pequenas manutenções e reabastecimentos do comboio.
Estica-se as pernas. Dá para conhecer as estações. Nas suas diferenças, as estações são iguais umas às outras. São momentos de pausa. Pequenos intervalos num filme que dura vários dias.




São pequenos centros comerciais ao ar livre. Nelas vendem-se mantas, gorros, bules, candeeiros, flores, icones ortodoxos, rebuçados, sandes, tabaco, água, carne e peixe seco.
Os vendedores vêm até às janelas, até às portas. Por vezes cruzam o interior das carruagens a apregoar o que têm nas mãos, entrando por uma das portas e saindo na outra extremidade da carruagem.




E é uma oportunidade para falar sobre nada com alguém do nosso comboio de uma carruagem distante da nossa ou do que está também parado e em sentido contrário.
Ao olhar para os outros passageiros à sua janela percebemos como somos nós à nossa janela.
Eles são uma imagem nossa. É um espelho a rolar na direcção oposta. Revemo-nos nos seus gestos, atitudes e rostos. Vê-se o que está em cima das outras mesas de apoio não difere das nossas. Garrafas de água ou sumo, vodka, bolachas, frascos de café solúvel. É uma perspectiva curiosa num interesse em tudo recíproco. Espreitamos e somos espreitados.





Do svidaniya


Os contactos entre companheiros de viagem opostos são tão breves quanto as paragens permitem. Nem é preciso saber nomes. Uma russa que falava inglês, estava em sentido contrário ao meu.
- Olá, de onde vens és russa ? 
- "Da". Vivo em Novosibirsk e vou até Moscovo. Estudo lá.
-  Sou de Portugal. Parti de Moscovo e vou até Irkutsk e daí parto para o lago Baikal. 
- Então vais a Listvyanska.
- Sim. passo lá uma noite. É interessante?
-  "Da". É uma pequena cidade. Situa-se na orla do lago Baikal. Existe apenas por causa dele. É comercial e muito turístico. Continuou - É uma zona de pequenos hotéis, bares e restaurantes. Mas por causa do turismo está a crescer.Nesta altura está sempre cheia de vida. Quase só russos. Vêm de todos os lados para passar lá umas férias. Mas também há muitos estrangeiros. Cada vez mais.
- E no inverno?
Riu-se e respondeu - No inverno Listvyanka é como o lago, congela. Chega a ter mais de um metro de espessura o gelo. Só serve para patinar e pescar. Quase ninguém vive lá, quase ninguém vai lá. Atinge os -25/ -30º e por vezes menos até.


Algumas pessoas já estavam a entrar nas carruagens e a minha provinitza estava a fazer gestos com a mão direita para subirmos para a carruagem.
- "Do svidaniya" - Até breve, disse num russo cómico sem lhe perguntar o nome. Tenho pena. Iria passar algumas horas a visitar a sua cidade, numa escala intercalar de meia dúzia de horas até Irkutsk.
Durante alguns efémeros minutos as nossas vidas cruzaram-se numa estação algures ainda a caminho da Sibéria.


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