Transiberiano, Rússia - um reino de reinos


Na primeira noite quando me deitei no beliche não tentei adormecer logo. Pelo contrário. Apurei os meus sentidos. Senti o ambiente à minha volta.
Ouvia a respiração dos meus companheiros de viagem. Umas mais pesadas, outras quase inaudíveis.
Sentia o balançar do comboio como um berço que me embalava. Senti o bater ritmado dos rodados nas vias férreas como um bater de um vigoroso e apressado coração metálico - clac clac, cla clac, cla clac.
Ouvia a deslocação surda do ar a percorrer a janela. Tempos a tempos ouvia o apito alongado e longínquo do comboio a soar.

Dentro do compartimento, o fecho da porta clicava irregularmente com os solavancos devido a uma folga e uma ligeira fresta na janela enfunava e fazia bater como uma vela a cortina cerrada.
Algo de plástico tanto roçava na parede do compartimento como batia contra ela num som seco e uma garrafa de água no chão rolava de um lado para o outro. Ao mesmo tempo alguém se mexia e mudava de posição.
A dada altura a porta do compartimento ao lado abriu-se para poucos minutos depois voltar a fechar-se. Certamente uma ida tardia à casa de banho de alguém que adiou o mais que pode a sua ida lá.

O meu compartimento estava cheio de pequenos ruídos de origens indistintas que o silêncio ampliava sem o perturbar. Tornavam-se até aconchegantes.



Noodles, livros, janelas e... vodka


O transiberiano é uma sociedade monárquica. São vários os reinos que nele podemos encontrar.
O maior deles é o reino da comida instantânea. São omnipresentes.
Quase toda a gente se alimenta de noodles, purés, cuscus, arroz, sopas, tudo quanto seja necessário apenas adicionar água.
Claramente é um dos reinos com maiores súbditos. Mas existem subdivisões deles. O dos cafés e chás.
A qualquer hora há sempre alguém que caminha de ou para o seu compartimento em passos cuidadosos no corredor equilibrando entre as suas mãos um balde de noodles ou uma caneca de água bem quente.
Preparar tudo isto e depois lavar pratos e talheres sempre queima algum tempo e é bom para entreter.
Como súbdito leal a eles curvo-me perante estes reinos.

Faço uma vénia também perante um objecto omnipresente e de qual o seu bom funcionamento depende o bem estar e harmonia de quem viaja no TS. O indispensável samovar. Todas as carruagens têm um.
Um cilindro rudimentar e tentacular com uma discreta torneira, alimentado por lenha que fornece água (bem) quente vinte e quatro horas por dia e a partir do qual se faz os tais noodles e afins e os ditos chás e cafés.
Quando este não funciona há uma inquietação palpável e muitos olhares dirigem-se frequentemente para ele.
Aconteceu isto uma vez. Não é confortável saber que o samovar não funciona.




Outro dos grandes reinos é o dos livros. Quase toda a gente trás um ou mais consigo.
Não significa que sejam lidos regularmente, mas o facto é que em todos os compartimentos há sempre alguém a ler ou pelo menos uma cama com um pousado nela.
Usualmente lêem-se em três sítios: nas camas, em pé nos corredores junto às janelas ou nos dois ou três pequenos bancos dobráveis que existem.

Eu também levei um. Quebrei descaradamente uma das regras que se diz que não se deve levar um livro sobre o tema, ou o destino da nossa viagem. O escolhido foi O Grande Bazar Ferroviário de Paul Theroux.
Um livro sobre uma épica viagem de comboio feita nos anos 80, partindo de Londres e atravessando toda a Ásia até ao Sudeste Asiático, passando naturalmente pelo transiberiano.
Começou bem, interessante, mas foi tornando-se monótono, pouco vivo, previsível e tão cheio de pormenores que duvido que os tenha vivido todos. No último terço do livro já era um autêntico frete lê-lo.

Esperas em salas de aeroportos, atrasos nas partidas, sucessivas escalas, longas horas de voos e mais oito mil quilómetros de comboio, não foram suficientes para o acabar.
Mas quando se trata do TS é indispensável andar com um livro na nossa mochila. Pode até nem sair da escuridão e dos confins da mochila, mas saber que os temos, é reconfortante.




O terceiro reino não podia deixar de ser se não as janelas.
Mesmo sabendo que a paisagem siberiana, até pelo menos chegar a Irkutsk é monótona e pouco variada como um padrão de uma papel de parede e que a estepe mongol é interminável e plana como um lençol bem estendido numa cama feita como deve ser.

No entanto é nelas que passamos a maior parte do nosso tempo e os nossos olhos e pensamentos caiem e se cruzam à medida que a grande serpente metálica devora quilómetros atrás de quilómetros, numa voragem interminável.




E ainda há mais um. É discreto, mais ou menos escondido dos olhares, presente em todos os compartimentos, mas que toda a gente sabe que existe.
Não é de bom tom guardá-lo só para nós. Tem que ser partilhado. É um bom motivo para se conhecer alguém, um facilitador de conversas. Conhecemos as histórias dos outros e nós contamos as nossas.

Dá para soltar umas gargalhadas e dependendo da nacionalidade ou nacionalidades com que se está acaba-se com um hispânico salud, um universal anglo-saxónico cheers, um francófono santé, um germânico prost, com um russo acaba-se com o inevitável na zdarovie e para todos eles um bem tuga saúde.
Trata-se obviamente da vodka. Esse maravilhoso líquido transparente típico das culturas nórdicas e do leste europeu e transversalmente bebida por todas as outras.
A bebida nacional da Rússia, mas que a Polónia, a Suécia, a Noruega e a Mongólia não ficam nada atrás.



Provinidza???


Mas acima destes reinos e de nós, meros passageiros, rege uma monarca absolutista, a provinidza.
São elas, por vezes eles, que literalmente regem os acontecimentos de uma carruagem.
Verificam os bilhetes, passaportes, se necessário indicam quais são os compartimentos a ocupar e são elas que entregam os lençóis e cobertores dos beliches que irão ser ocupados e nos acorda um par de horas antes de chegarmos à estação se a chegada for nocturna ou durante a madrugada.
O guia da Lonely Planet, afirmava solenemente que a provinidza era aquela a quem devíamos obediência.

Literalmente podem tornar a nossa viagem um paraíso ou então através delas descer a uma caverna escura e densa cheia de niets. Niet para ter janelas abertas, niet para falarmos nos corredores, niet para gargalhadas mais expansivas, niet para não estarem várias pessoas ao mesmo junto ao samovar, niet para se beber vodka nos corredores. Niet, niet, niet, ou seja, não, não, não.




São as donas das portas das carruagens nas estações, são elas que avisam quando o comboio está para partir.
São elas que lavam (às vezes mal) as casas de banho da carruagem, lavam (ou não) o corredor e (nem sempre) aspiram os compartimentos dos beliches. E mais importante ainda, são elas que mantêm o imprescindível samovar a funcionar…ou não.

Chocar contra elas, é como chocar contra uma parede e nem sempre um sorriso consegue derreter uma carrancuda provinidza feita de gelo.
Mas se as temos do nosso lado, temos tudo. Emprestam talheres, canecas e pratos para os mais necessitados e com paciência ensinam-nos a pronunciar os nomes das estações em russo, gostam de aprender a dizer os nosso próprios nomes e com um pouco de sorte até partilham da nossa vodka.

Mas o seu trabalho também não é fácil. Lidar diariamente com uma montanha de gente cujas línguas não percebem e com hábitos culturalmente bem diferentes dos delas também não deve ser fácil.
Excepto para a Natasha.


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