Transiberiano, Rússia - a provinidza Natasha e o arquitecto Jacques


A meio da segunda noite, acordei com algo estranho. Qualquer coisa estava diferente.
A canção de embalar do meu berço, tinha cessado e o movimento suave dele tinha acabado. Percebi, não muito facilmente, que o comboio estava imobilizado.
Com o cérebro parado pelo sono, considerei normal que tal acontecesse.
Literalmente pensei que o maquinista era humano e portanto também ele tinha encostado o comboio em algum lado e estava a bater uma soneca. Fazia sentido e era justo. Voltei a adormecer.
Ainda durante essa noite a situação repetiu-se um par de vezes e um par de vezes cheguei à mesma conclusão.

Foi só de manhã que percebi verdadeiramente o que tinha acontecido. Claro que o comboio não parou para o maquinista ir dormir. Apenas parou em algumas estações para entrar e sair passageiros.
Foi o deixar ser embalado por ele, a ausência do seu movimento, a ausência do seu ritmo metálico que me fez acordar.
Tal como nós acordamos na nossa casa com o vento nas janelas, a chuva forte no telhado ou com o soalho que range e que faz quebrar o silêncio a que nos habituamos, no transiberiano foi precisamente o oposto.

Ele não para durante a noite. Continua a precisar de quilómetros para se alimentar.
Mas era quando o silêncio se tornava gritante nos minutos que duravam as paragens de entrada e saída de passageiros que acordava. Tal como uma luz que entra inesperadamente pela frincha de um esquecido estore caseiro semiaberto.
Nessas alturas sentia que algo estava diferente daquilo a que já me tinha habituado. O meu conceito de conforto tinha-se alterado durante essas paragens. 

Na segunda noite o transiberiano já era a minha casa.



A provinidza Natasha


Natasha foi a minha primeira provinidza. Uma guardiã da boa ordem da carruagem 16.
De cabelo curto e muito escuro, olhos castanhos escuros, sorriso discreto e formas cilíndricas. Fazia-me lembrar a “hipopótama” de tutu cor de rosa semi-transparente do filme da Disney, Fantasia, que dança o sketch A Dança das Horas de Ponchielli com um garboso crocodilo.
Apesar das suas dimensões, Natasha conseguia emanar uma certa feminilidade.




Quando mencionei isso a Jacques, riu-se e disse-me que ela parecia mais um jogador de rugby de primeira linha da selecção gaulesa. Qualquer que fosse a comparação era irrelevante.
Natasha trabalhava que se fartava, era delicada, prestável e tinha um sorriso tímido encantador.

Não falava uma palavra de inglês. Às vezes falava connosco em russo como se fosse a única língua do mundo que nós conhecíamos.
Foi a bater com a minha mão no meu peito enquanto dizia o meu nome e depois a estendê-la na sua direcção que descobri o seu nome. À boa e velha maneira de “Eu Jane, tu Tarzan”.

Usualmente uma carruagem tem duas provinidzas que se revezam nas tarefas. Natasha estava sozinha.
De manhã bem cedo lavava o corredor, a meio da manhã, depois de uma boa parte dos pequenos-almoços estarem tomados, ela aspirava cada um dos compartimentos e as casas de banho andavam sempre muito razoavelmente limpas a qualquer hora.
E sempre que pedido apontava no horário da parede qual a próxima estação e tentava ensinar em russo o nome de cada uma delas.

À noite saia do seu quarto de havaianas, com um vestido de noite pouco acima dos joelhos, muito florido e kitsch e de toalha na mão. Passava por quem conversava no corredor como se este estivesse vazio, tomava o seu banho e no regresso desejava “spokoynoy nochi” que mais tarde descobri que significava boa noite e deitava-se.
De manhã repetia as mesmas tarefas, a mesma rotina e com o mesmo empenho.




Antes da chegada às estações fechava as casas de banho, talvez quinze minutos antes e depois as passarmos rapidamente as abria. Haveria de apanhar bem mais frente casos em que elas eram fechadas quase uma hora antes e depois das estações e só eram abertas após pedidos insistentes e frequentemente acompanhadas de uma boa dose de antipatia.

Esta é uma lição que se deve aprender rapidamente no transiberiano. Antes da chegada às estações as casas de banho são fechadas e só são abertas depois de o comboio as passar. A razão é simples.
Tudo o que se faz nas casas de banho, acaba nas linhas de comboio e portanto evita-se que isso aconteça nas paragens enquanto entram e saem passageiros ou se troca a locomotiva.
O que deve ser feito lá, tem que ser feito com a devida antecedência e tendo em conta o tempo de paragem de cada das paragens.
Isto é particularmente válido e importante ao cruzar as fronteiras com a Mongólia e com a China.




Jacques Moreau


Jacques Moreau era um dos meus companheiros de viagem. Tal como eu, iria sair em Novosibirsk. Era um arquitecto francês, ainda no activo, com 71 anos.
Tinha aspecto macilento, ar de quem a idade pesava no corpo. Olheiras profundas, olhar cansado, cabelo grisalho, desgrenhado como se tivesse acabado de se levantar da cama naquele momento.
Gostava do seu espaço e da sua privacidade.

Pouco falador, fazia-o lentamente, pesando cada palavra dita.
Trocámos poucas palavras ao longo do tempo que viajámos juntos. Levantava-se relativamente tarde, numa altura em que eu já estava no “activo”.
Tomava o pequeno-almoço depois de mim, o que lhe agradava. Segredou-me que gostava de tomar o pequeno-almoço sozinho e ter a mesinha do compartimento para si.
Lia bastante e escrevia frequentemente num caderninho de argolas, notas de viagem.

Como arquitecto tinha adorado o estalinismo das sete irmãs de Moscovo, a ortodoxia das igrejas, a monumentalidade da Praça Vermelha, a traça do GUM e claro o exotismo geométrico e colorido da Catedral de São Basílio.
Era uma espécie de urban sketcher. A custo mostrou-me os seus desenhos.

Esboços de traços simples, rápidos, a lápis preto, aparentemente pouco precisos mas que criavam imagens fieis do que via. Detalhados sem no entanto se tornarem pesados. Usava magistralmente os sombreados para conferir volume e uma surpreendente luminosidade aos seus desenhos.
Não só desenhava os marcos arquitectónicos moscovitas, como também as suas paisagens urbanas. Pontes, estradas, candeeiros e viadutos.
Admirei-o. Admiro sempre quem é capaz de fazer de um desenho seja de que maneira for. Sou incapaz de o fazer.

Numa das alturas em que eu e ele escrevinhávamos nos nossos blocos, aproveitei para meter conversa.
- Escreve em todas as viagens que faz?
- Não. Na verdade raramente o faço.
Hesitei nas perguntas seguintes. A resposta praticamente tinha fechado a conversa.
Há muita gente que tira apontamentos só para si. Não são para serem lidos. Apenas para memória futura ou preservar pensamentos que de outra maneira se arriscariam a tornarem-se fugazes.
Mas Jacques acrescentou - Nem tenho nenhum blog de viagens.
Mantive-me calado à espera de mais. E veio.
- É um diário. Cartas escritas todos os dias.
- Vai mandá-las de Novosibirsk?
Uma pausa longa, pesada. O que estava para ser dito certamente que o incomodava e lhe doía na alma.
- Não. Não há ninguém para mandar, para a receber ou lê-la.
De novo uma pausa longa. Olhos no chão, momentaneamente perdido no passado e certamente afogado em saudades de algo ou de alguém.
Levantou os olhos mas sem olhar para mim, como se eu estivesse ausente naquele momento, explicou lentamente:
- É dedicada a quem já partiu, a quem devia estar aqui comigo e não está. Esta viagem está atrasada no tempo, atrasada na oportunidade.
Continuou.
- Pensamos que temos tempo, que podemos deixar as coisas para outra altura, adiar e afinal não podemos. Já devia ter sido feita vários anos atrás, quando ainda era possível fazê-la. Com ela.
E fitando-me bem de frente concluiu:
- Agora, por isso, em vez de a partilhar, dedico-a. Compreende?
Assenti em silêncio com um maneio de cabeça.
Com os olhos brilhantes, demasiado brilhantes, Jacques pôs o bloco de notas de lado, agarrou no seu livro de viagem e começando a ler refugiou-se nele.


Entreguei dobrada a roupa do meu beliche à Natasha. Dei-lhe uma gorjeta que a apanhou de surpresa.
Ficou feliz e cá fora no seu sorriso já menos esboçado e mais alargado, com a mão ao nível do seu peito acenou-me quase imperceptivelmente e disse-me do svidaniya - até à próxima.

Tinha planeado uma fotografia com ela, cá fora, ao lado da porta da carruagem 16. Mas chovia bastante e Natasha ficou nos degraus da escada. A fotografia ficou por tirar.
O vulto de Jacques estava em movimento no corredor da carruagem. Preparava-se para sair dela.

Corri para a cobertura da estação e antes descer as escadas disse-lhe adeus mais uma vez enquanto a imaginava a bailar a Dança das Horas na fonte com o seu esbelto crocodilo.


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