Transiberiano, Rússia - Novosobirsk, a cinzenta


Um facto curioso no transiberiano, ou como já escrevi antes, na linha transiberiana, é o de se poder viajar, dar saltos no tempo como se tratasse de um portal situado entre as escadas do comboio e o chão da plataforma que se pisa.

Dentro dos comboios é o horário de Moscovo que impera. Não importa quantos fusos horários vão sendo atravessados à medida que o comboio avança, está-se sempre na hora de Moscovo.
Para referência, na altura em que fiz esta viagem, em Agosto, a diferença horária de Moscovo era de mais três horas em relação a Portugal. 
Em Novosibirsk, a hora local é mais cinco horas que Moscovo e portanto mais oito que a portuguesa, mas dentro do comboio continuava-se em Moscovo e logo só mais três que Portugal.

À medida que vamos viajando para oriente, sem nos apercebemos, vamos adormecendo cada vez mais tarde no dia e cada vez mais cedo no relógio.
Descer as escadas para ir para a estação, ir comprar qualquer coisa ou visitar uma cidade e depois voltar a subi-las de regresso ao comboio implicava dar saltos de várias horas no tempo.
O que não deixava de ser divertido.



Desalmada


Iria estar cerca de seis horas em Novosibirsk.
Pretendia tomar um banho na estação Glavny, repor mantimentos para mais duas noites no comboio e num relâmpago visitar a cidade.

Os banheiros da estação são no topo do edifício principal da estação. De uma das janelas nas escadas tinha-se uma vista muito bonita para a miríade de linhas de comboio que compõe os bastidores de uma estação ferroviária.
As banheiras estava razoavelmente limpas. Mesmo assim pedi a uma funcionária para a limpar melhor com uma toalha que parecia não estar menos suja que a banheira.
A água estava algo fria, mas suportável. Para o preço que tinha pago não estava mal. O suficiente para me sentir renovado da roupa que já não mudava há alguns dias.

Novosibirsk fundada em 1893 é a maior cidade da Sibéria e a terceira maior da Rússia depois de Moscovo e São Petersburgo.
Cidade essencialmente industrial, ganhou relevo e importância geográfica quando em 1893 foi decidido que a linha transiberiana passaria por ela em vez da vizinha Tomsk. Até 1925 o seu nome era Novo-Nikolayevsk em honra do czar da Rússia, Alexandre III.
Nesse ano por vontade do povo passaria a chamar-se Novosibirsk, a Nova Sibéria.


A cidade é monótona e cinzenta como as pessoas que lá habitam. É deslavada.
Falta-lhe alma. A centelha da vida. A arquitectura dos edifícios ajuda e aumenta essa impressão. Sendo modernos no tempo, mas básicos e sem imaginação na concepção. Caixotes envidraçados sem arrojo.

As ruas não são coloridas, não apelam aos olhos ou aos sentidos. Até o sol que já se punha e acrescentava cores quentes às ruas húmidas da chuva acentuava a sua solidão.




E mesmo que à porta de um pequeno centro comercial, três malabaristas desajeitados e numa vivacidade algo mortiça, fizessem as suas poucas habilidades, ninguém parava ou dedicava-lhes uns meros segundos de atenção.
Não porque estivessem apressados, mas sim porque estavam desinteressados. Autómatos programados para ir de um ponto a outro sem parar na casa partida.

Caminhei algumas horas pela avenida central e por algumas ruas secundárias. O ambiente era o mesmo.
Alguns quiosques estavam fechados, os cafés com pouco movimento e os restaurantes fast food estavam parados, muito pouco fast mas não fechados.
Apenas alguns pequenos mercados mostravam movimento, mas lá dentro não tinham nada que eu precisasse.
As estradas, também elas meio molhadas da chuva recente que tinha caído estavam quase sem circulação.

Para uma sexta-feira, à hora de ponta em qualquer hora do mundo, talvez umas seis ou sete horas da tarde, hora local, aquele vazio desolador era anormal.
As poças de água espalhadas aqui e acolá no pavimento, reflectiam a vida cinzenta e quase ausente da cidade.





Há música na estação


Decidi voltar para trás e regressar rapidamente ao largo da estação dominado pela entrada da mesma.
Esta sim tinha algum movimento. O céu já tinha ganho os matizes alaranjados do pôr do sol e os cinzentos escuros da chuva que já tinha cessado entretanto contrastavam suavemente entre si.

Havia bancos que estavam colocados na sua periferia com alguns velhos sentados neles e turistas a lerem ou a comer qualquer coisa para ir roendo o tempo que faltava para as suas partidas..
Uma floristas e os vários quiosques que estavam abertos iam conseguindo vender alguma coisa.




Aqui já havia uma mistura de locais com turistas que tal como eu enchiam a dispensa para os dias seguintes.
Tinha reparado anteriormente numa loja de conveniência, aberta 24h por dia e fui até lá.
Atestei os sacos com noodles de cogumelos e vegetais, sumos, fruta, frutos secos, pão de sementes e vodka, claro.
Acrescentei um pacote de bolachas para comer na altura e alternei a minha atenção entre um duo de guitarra e violino, e um trio de guitarra, acordeão e o que parecia um cavaquinho.

Todos eles músicos de rua que tocavam para alguns gatos pingados que tal como eu esperavam pelos seus comboios ou que apensa estavam de passagem sem pressa para suas casas.
Gostei imenso da música que tocava o cavaquinho. Ela parecia perceber da coisa, estava a curtir o momento e o som que se libertava dos seus dedos era cristalino. Estava em grande.




Chegou a hora. Pela segunda vez, voltei a entrar numa estação de comboios carregado que nem um burro. Desci as escadas para a plataforma, procurei a minha linha, o meu comboio e a minha carruagem, a 5.

Mesmo em frente à porta da carruagem um letreiro no topo de um arco em caracteres cirílico iluminava o céu escuro. Sabendo onde estava era fácil decifrar o que lá estava escrito - Novosibirsk.




A provinidza carrancuda, de gestos bruscos e cujo nome nunca descobri, confirmou o bilhete, o meu passaporte e mandou-me entrar. Mais uma vez recuei cinco horas no tempo.

Mochila de novo para o beliche de cima e senti de novo o conforto de estar, de regressar a casa.
Vinte minutos depois sentia os primeiros solavancos hesitantes e logo a seguir a decisão do movimento regular e firme.
Mais duas noites e Irkutsk e o Lago Baikal seriam as primeiras grandes paragens da minha viagem por quase um quarto do perímetro do planeta.


Comentários

  1. Boa Noite

    Como disse, fiquei fascinada por este espaço e pelo outro também. Virei cá visitá-lo com mais tempo e com mais calma. Sem correrias. Porque vale a pena.

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