Transiberiano, Rússia - mítico Baikal

Já tinha estado antes em lagos míticos para mim. Nomeadamente o Lago Vitória que espraia entre as três fronteiras do Quénia, Tanzânia e Uganda, e o Lago Titicaca que se estica entre o Peru e a Bolívia. O Lago Baikal que fica inteiramente na Rússia (Sibéria) é o terceiro deles. 

É maior destes três em comprimento. Mas perde em área com pouco menos de 32000 m2 para o Vitória com os seus 68800 m2.
Tem de comprimento qualquer coisa como cerca de 630 quilómetros e no seu lado mais estreita cerca de 80 quilómetros. É uma longa vírgula sem ponto.
É o mais profundo do mundo. Em média tem mais de 700 metros de profundidade e tem um pico de quase de 1700 metros.
Constitui a maior reserva natural de água doce do mundo. Um quinto das reservas mundiais, vinte por cento delas, estão aqui. É também o mais antigo lago do mundo com uma idade estimada entre os vinte e cinco a trinta milhões de anos. 

Pensa-se que seja um rift. Uma ferida geológica. Duas placas tectónicas activas - a Euroasiática e a Amur - que se afastam umas das outras, tornando o Baikal cada vez mais profundo. 
A água de mais de trezentos e trinta rios que o alimentam funcionam como um penso rápido que não ajudando a cicatrizar o Baikal, o tornam no entanto único entre todos os lagos de água doce.
Mas o Baikal é egoísta. De todos os rios que alimentam esta vírgula azul, apenas cede a sua água a um, o que nasce dele. O rio Angara.

Foi reconhecido como património mundial da Unesco em 1996 pela sua beleza e rica biodiversidade. A poluição de uma fábrica de papel nas suas margens, na vila de Baikalsk, e os gasodutos e oleodutos que passam nas suas imediações colocam em risco esta classificação. 



Na margem do Baikal


Olhando em frente não lhe via o fim.
É ele quem interrompe esse gigantesco vazio de estepes e taiga que é a Sibéria. E nessa vastidão encontramos um lago a condizer com essa mesma vastidão, o Lago Baikal.
Era para ele que olhava agora. Imaginei-o como o maior pequeno mar de água doce do mundo.


Listvyanka tem o seu quinhão de praia deste mar. Uma faixa com cerca de cinco a sete metros de largura com alguns centenas de metros de comprido feita de calhaus rolados por onde muitos russos no curto espaço de tempo que dura o verão siberiano passa as suas férias.




Tem os churrascos de "praia" que vão distribuindo o pessoal pelas mesas disponíveis que povoam o areal de calhaus, ao mesmo tempo que vão servindo as que estão ocupadas.
Em alternativa há umas pequenas barracas, mais caras que as mesas, com bancos corridos que podem albergar quatro eventualmente seis pessoas.
Pratos de arroz plov - arroz cozido com carne e vegetais - com pernas de galinha assada ou omul - peixe local - fumado, pacotes de batatas fritas, cervejas e refrigerantes circulam rapidamente entre mãos e mesas. Quem trabalha aqui não tem mãos a medir. É umas mistura de fumos, gritos e aromas.

Do lado oposto da estrada, está o movimento todo. Carros mal parados, carros estacionados, carros que andam devagar porque a estrada é permanente cruzada pela ida e vinda das pessoas das margens do lago.
Deste lado, há vários restaurantes e um mercado coberto por toldos que lhe dá um colorido alaranjado.
Pequenito, é igual aos que se vê um pouco por todo o mundo. Já está meio vazio. Mas continua cheio de gente. Passeio por lá, por entre as bancadas. Pão, queijo, carne, peixe, fruta, recordações de ocasião e algum artesanato.
Uma senhora vaidosa mostra o seu longo cabelo loiro com uma longa trança e algumas flores amarelas presas nela. Faz-se às fotografias. A pose e o sorriso são sempre os mesmos. Fiz-lhe a vontade, mas não lhe comprei nada. Apenas um chamariz para as bugigangas que vende.

Volto a atravessar a estrada de volta para o areal de pequenos calhaus rolados.
Uma senhora que claramente me pareceu muçulmana, estava agachada num num pequeno e instável pontão improvisado de tábuas de madeira, molhando as mãos nas águas fria do lago.




Não muito longe dela, um senhor na casa dos setenta anos, todo vestido de negro e de casaco negro com aspecto de muito uso e com as calças dobradas ligeiramente abaixo do joelho e pés metidos na água.
Estava perdido no tempo e no espaço. Espreitava ao longe o que só ele via. Olhos alheados a tudo à sua volta. Viajava no vazio, preso aos pensamentos enrolados no fumo cinzento do cigarro que tempos a tempos levava à boca.




A alta, a média e a baixa


Caminhar por esta pequena faixa de margem do lago é quase como folhear uma muito kitsch revista de moda. Nele vemos a estratificação da sociedade russa.

A elite. Bem vestida, óculos de sol da moda, grossa argolas nos pulsos e ostensiva. Come nas mesas e bancos de plástico branco colocados nessa estreita faixa social que separa o paredão da água ou opta pelos inúmeros restaurantes da estrada que contorna as margens do Baikal.
A média. Misturada com a elite mas caracterizada por fazer piqueniques com comer trazido de casa. Sentados e deitados na “areia”. Roupa mais modesta e muito colorida, fios com medalhinhas penduradas no pescoço, mais filhos, grupos maiores.
A baixa. Claramente separada destas duas. Não a vemos. Temos que ir procurá-la. Está no lado B do Baikal.
É preciso caminhar umas centenas de metros longo do pretenso areal, contornando alguns obstáculos mais ou menos naturais, atravessar um parque de estacionamento improvisado mas lotado, voltar à estrada e depois descer mais uma vez para o lago.
São os que comem dentro dos carros, ou em cadeiras de pano viradas para o lago e têm um par de canas de pesca atiradas para as águas agora refulgentes pela luz intensa do sol.




É uma área maior mas com menos gente, sem oferta turística ou restauração. É suja e degradada.
Restos de casas decrepitas pintadas com maus grafitis sem gosto, carros a apodreceram aos caprichos do tempo, restos metálicos que sem esperança ainda vão resistindo à corrosão de antigos barcos de pesca e pedaços de manilhas de cimento cinzento partidas e tão abandonadas e tristes como as casas decrepitas.
Aqui sou olhado como um estranho. Mais avaliado que cobiçado.
Avanço mais um pouco, vejo turistas ocidentais a fazer caminhadas por um trilho no topo da falésia e decido regressar.

Volto às bancas de artesanato junto às estações de camionetas, onde consigo ouvir espanhol, italiano e alemão e procuro alguém com um pequeno barco que me faça um pequeno tour pela zona circundante da costa de Listvyanka.
Negoceio o preço como em qualquer outra parte do mundo. Ameaço ir procurar outro que faça a mesma volta por menos e lá consigo o preço que pretendia. Comigo vão mais cinco ou seis pessoas.

O barco é relativamente pequeno, algo instável. Por cada pessoa que entra ele balança para esse lado. Equilibrou-se pesos de cada um de nós para um lado e para o outro, até o barco ficar razoavelmente estável.
Dá para ver o perfil da costa que contorna a vila e à medida que nos afastamos do centro e percebe-se no horizonte o perfil das montanhas que contornam o lago.
Os diferentes gradientes de azul nas montanhas dá-nos a percepção da distância. Azul escuro, as mais próximas e as quase dissolvidas no horizonte em tons mais claros.
A hora passou rápido e o pôr do sol já dava os seus primeiros passos.


Anamar

Apressei-me. Fui buscar umas cervejas para ver o pôr do sol e passando por entre barreiras de protecção sentei-me numa pequena plataforma que havia mesmo junto à estrada com uma boa vista sobre o porto, onde já estava sentada uma rapariga brasileira de São Paulo. Chamava-se Anamar.
Era professora de biologia e geologia. Tinha o cabelo preto, comprido ondulante até aos ombros. Tinha um pendente no pescoço que me pareceu uma trilobite fossilizada. Rosto alongado com lábios finos e olhos brilhantes castanho escuro e sorriso jovial.
Também estava a fazer o transiberiano, mas ia ficar mais uns dias em Listvyanka que eu.
O sol começava a baixar no horizonte.

Conversámos um bom bocado. Naturalmente entre quem viaja os temas são as viagens. Por onde andámos, para onde queríamos ir, porque viajamos.
Anamar falava com exuberância, com paixão sobre as viagens. Costumava viajar com um grupo de amigos, agora fazia pela primeira vez uma viagem sozinha, apenas com colegas de viagem que se iam cruzando com ela. Sarava feridas internas.
É algo que também é comum a quem viaja. Procurar a cicatrização de uma ferida da vida. Um esforço de renovação, quase uma tentativa ou continuação de sobrevivência.
A brasileira perguntou-me porque viajava. Sorri. Já conhecia bem as respostas que lhe ia dar. Já as tinha dado antes noutras alturas, noutros países e também já as tinha ouvido de outras pessoas em outros países.
Olhei para o sol que ia descendo sem qualquer tipo de pressa, sem inflamar o céu e respondi à sua pergunta.

É um fugir à jaula dos gabinetes, da luz artificial dos open space. Fugir à rotina, à escravidão dos horários, ao quotidiano que nos esvazia e castra. É a oportunidade de vivermos em vez de estarmos ocupados. É uma inquietação saudável.
Viajar é um processo de descoberta e também uma procura de paz e de cura. Literalmente procurar estar bem com o mundo e nesse espaço de tempo estar bem comigo próprio.
Motiva-me o desassossego, a inquietação do novo e o desconforto de deixar o conforto da casa para trás.
É a altura perfeita para arrumar pensamentos ou então o seu oposto, pô-los de lado e fazer um intervalo deles.
Disse-lhe que havia um escritor viajante português, chamado Gonçalo Cadilhe que escreveu num dos seus livros, uma frase que gostava muito que dizia "Viajar é encontrar aquilo que não se procura".
E era isso que queria em cada viagem que fazia. Encontrar novos rostos, novas formas de sorrir, novas cores de pele, paisagens diferentes e aromas desconhecidos. E era um círculo vicioso. Como as crianças. Quanto mais brinquedos têm, mais brinquedos querem e precisam.

O sol continuava a descer devagar. Parecia que não se queria pôr. Queria ficar suspenso nos céus densamente cinzentos mais uns tempos. Alguns barcos de pesca foram chegando entretanto.




Anamar escutou-me em silêncio todo este tempo fitando ao longe as águas escuras. Quando acabei, ela olhou para mim com a mão direita apoiando a cabeça e o cotovelo no joelho direito que estava levantado e respondeu:
- É isso mesmo. É isso tudo ao mesmo tempo.
Pensou um pouco mais antes de continuar.
- Mas também é mais que isso. É como a ciência, é como o ensino. Quanto mais se sabe, maior se tem a necessidade de saber. Quando você já tem respostas para as suas perguntas, surgem logo mais perguntas.
- Nunca estamos satisfeitos precisamos sempre de conhecer mais. E quando você fala com outros viajantes, sobre as suas experiências, fica curioso com elas e esse processo de descoberta nunca pára. Você fica querendo mais. São esses os nossos brinquedos de crianças.
Virando os olhos para o infinito do horizonte, concluiu:
- A inquietação, o desassossego que falou, nunca pára, não. Há que avançar sempre um pouquinho mais nesse mundo.

Preguiçosamente a pequena bola de fogo discreta lá mergulhou no lago sempre com aquela tela cinzenta como pano de fundo.
Eu e a brasileira tocámos as nossas cervejas uma na outra, saudando o encontro, saudando o sol, saudando a conversa e claro saudando as viagens.


Alexander

Até ao fim desse dia ao procurar uma casa de banho num bar ainda haveria de me cruzar com o Alexander.
Um enorme e muito anafado russo de São Petersburgo e já bem bebido. Perguntou-me de onde vinha. Quando lhe disse que era de Portugal, abriu os olhos e os braços e de repente vi-me sufocado por eles.
- Ronaldo, Ronaldo!!!!
Mais conversa de bola. Sempre me chateou quando Portugal era conhecido por jogadores de futebol. É uma maneira frívola de um país ser conhecido. Lá confirmei a nacionalidade do Ronaldo.
- Sim Ronaldo, Portugal.
- Ronaldo, Ronaldo, melhor jogador do mundo, Manchester United.
Senti-me na obrigação de o esclarecer, apesar de ignorante em assuntos de bola.
- Não pá. Ronaldo joga no Real de Madrid.
O redondo russo encolheu ombros fez um trejeito de resignação e continuou no inglês quebrado dele.
- Pois não. Agora Real de Madrid. Agora não gosto dele.
- Então gostas mais de Messi?
- Messi não. Messi não joga no Manchester.
- Então agora qual é o melhor do mundo?
- Wayne Rooney!
Bateu com a mão no peito várias vezes e com força e gritou: MANCHESTER!!!
Percebi logo a coisa. O melhor do mundo tem que jogar no Manchester United. Seja ele quem for.
Para pôr um fim naquilo confirmei:
- Tens razão. Rooney é mesmo bom.
Fui de novo sufocado pelos balofos braços.
- Quando partes?
- Amanhã volto para Irkutsk.
- Estás na Rússia, a minha casa, pago-te uma bebida. O que queres?
Não estava nada a fim de beber o quer que fosse com ele, mas se não bebesse ficava mal visto.
- O mesmo que tu. Que estás a beber?
- Margaritas.
Azar. Detesto margaritas por causa da tequilha. No país da vodka, devo ter apanhado o o único russo que não bebia vodka.
- Bebo uma contigo e depois vou embora. Tenho de ir para o hostel. Ok?
Ele concordou.

Na Rússia, por tradição, antes de se beber uma bebida alcoólica brinda-se sempre. O russo não perdeu tempo e brindou ao Manchester.
Bebi a margarita rapidamente para aquilo não durar muito. O sabor da tequilha ficou logo colado à minha boca. Só me apetecia lavar os dentes. O russo ficou espantado a olhar para mim e depois despachou a dele também rapidamente.
- Boa!!! Boa!!! Ofereço-te outra. Faço questão. Estás na minha casa. Os russos são cool.
Nem pensar em mais margaritas. Queria sair dali para fora rapidamente, mas para não ser rude propus-lhe:
- Olha, agora bebemos os dois um vodka pelo Cristiano Ronaldo, pelo Rooney, pelo Manchester e para que um dia vás a minha casa em Portugal e depois tenho mesmo que ir embora. Tenho pessoal à minha espera. Ok?
- "Da!" - concordou pela segunda vez.
Fizemos um brinde à Rússia, a Portugal e ao Manchester. Bebemos os shots de vodka gelada de uma só vez à boa maneira russa - "do dna" dizem eles.

A russa que estava atrás do balcão estava divertida com a situação e ofereceu por conta do bar outra rodada de vodka. Seja, pensei eu. Sempre ajuda a lavar os restos da tequilha que ainda sentia na boca.
Outro brinde. Desta vez não houve futebol. Foi dedicado a nós dois, "za vas" - a ti - ao Pedro e ao Alexandre. Nem me atrevi a dizer que também era Alexandre. Na certa que teria brindes de vodka à borla até um de nós cair para o lado. E sem dúvida que eu seria o primeiro.
Mais um abraço gelatinoso na despedida e ainda ouvi outro grito pelo clube inglês. Levantei o polegar para o exuberante russo e cruzei de imediato a porta para o ar fresco da tarde escurecida.

Cirandei pela zona mal iluminada do porto até fazer-se noite. Pouca gente e não muito recomendável.
À parte um casal que tentava fotografar uma ocarina de porcelana com a forma de um gato, em cima de um pilar de amarração de madeira, a noite exibia a sua habitual fauna nocturna.
Pequenos grupos com garrafas de vodka aos pontapés a garrafas e latas vazias ou aos berros, alguns pescadores que andavam por ali aparentemente sem objectivo e um ou outro outro pedinte ou a pedir rublos de mão estendida aos poucos que por ali passavam.


Apanhei o caminho de volta para o hostel. Estava completamente escuro e sem luz.
As árvores eram sombras escuras que se destacavam contra o brilho do céu estrelado. Perdido a olhar para o céu, perdi-me no caminho. Felizmente ouvi o resfolegar dos cavalos.


Comentários

  1. Acabei de ler...e ver...
    Estou sem palavras, a tentar imaginar gostos, cheiros, sensações...

    "É a oportunidade de vivermos em vez de estarmos ocupados"

    Bela, esta frase. Diz tanto sobre a forma de encarar a vida! E de novo, uma enorme inveja, Pedro:)

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