Transmongol, Mongólia - a minha casa de campo asiática


Mongólia. É a resposta rápida e sem hesitar que dou quando me perguntam qual o país que mais gostei de viajar. Poucos segundos depois perguntam-me porquê. A resposta é igualmente rápida.
Porque ninguém vai lá é ainda um país praticamente intocado pelo turismo, que conserva muito da sua pureza, as pessoas são rudes mas sinceras e poucos sorrisos são mais bonitos que o dos mongóis de rosto redondo como uma lua cheia.

Prestes a cruzar a fronteira Rússia - Mongólia sentia-me ansioso. Estava a poucas horas de lá voltar.
A Mongólia é um país mágico. Tenho uma parte do meu coração lá. Nenhum outro país marcou tanto a minha vida como ele.
Nas Regras da Sensatez cuja letra foi escrita pelo melhor letrista nacional, Carlos Tê, Rui Veloso canta que não se deve voltar a um sítio onde se foi muito feliz. 

Faltava algumas horas para quebrar violentamente este sábio conselho como quem entra propositadamente em contramão numa rua de sentido proibido com o seu carro.
Verdade que não iria ver a "minha" Mongólia de há seis anos. Iria ver outra parte da Mongólia e também iria estar bastante menos tempo que da primeira vez. Três dias contra três semanas.
Mas de qualquer maneira iria lá voltar. E isso levantava-me um grande bando de borboletas bem dentro de mim.



Burocracia I


A saída da Rússia é um fenomenal colete de forças burocrático que começa quando os passaportes são entregues para controlo dos vistos e passadas quase seis horas depois são devolvidos.
Inicialmente não se pode sair da carruagem e as janelas estão fechadas. O calor tornava quase impossível cumprir esta imposição. Sem qualquer ar a circular, este formava um colete de forças quente que nos sufocava o corpo.
Os funcionários da fronteira russa, de cara fechada, hermética e quase sem dizer uma palavra, recolhem todos os passaportes e entraram nos compartimentos. Em modo automático revistam os lugares óbvios.
Os alçapões por debaixo das camas inferiores, os colchões e o pequeno espaço por cima da entrada da porta do compartimento.
Só depois somos autorizados a deixar a carruagem.




Antes disso todos os estrangeiros que iriam cruzar a fronteira com a Mongólia são colocados numa única carruagem de cor verde escura.
Na fronteira, a carruagem seria isolada das restantes e posteriormente seriam atreladas novas carruagens com novos passageiros e uma nova locomotiva.



A carruagem de Babel


Por isso todos os estrangeiros se encontram e passam juntos a última noite em território russo.
É nesta altura que temos a noção da variedade de nacionalidades e das línguas que circulam no transiberiano.
Suíços, holandeses, norte-americanos, espanhóis, alemães, australianos, ingleses e um chinês de Hong Kong. Uma carruagem de Babel à prova de Deus. Todas as línguas e os países que representavam estavam unidas por um denominador comum e à prova de bala nestas condições: viagens.

As conversas, o ruído e as gargalhadas ampliadas pelas repetidas cascatas das garrafas de vodka para os copos de cada um, espalhavam-se pelo corredor e pela noite dentro.
As histórias de cada um tornavam-se um pouco as histórias de toda a gente. Elas desvendavam-se na exacta medida do tamanho do globo e das aspirações individuais a conhecer as várias fatias que o constituem, ou melhor ainda a contar e explicar o sabor das fatias já provadas.

O suíço, muito falador e reformado, está há três meses em viagem. Tal como todos nós saia em Ullan Baatar mas já não voltava ao transiberiano. Tinha condutor e carrinha alugada e planeava cruzar o Deserto de Gobi.
Falei com ele um bom bocado sobre o Gobi. A "minha" Mongólia é precisamente essa. Sem estradas, recôndita, brava, seca e aberta até onde os olhos se cansam, mas cheia de gente acolhedora que não fala uma única palavra de inglês. Pequena aldeias espalhadas e tão espaçadas pelo deserto que são por vezes são necessários vários dias para se chegar a uma. Mongólia em seu estado puro.

Os holandeses, são quatro e todos a rondarem os dois metros de altura, conheceram-se numa faculdade e decidiram fazer o transiberiano juntos. Mais tarde voltaria a encontrá-los ao atravessar a fronteira chinesa.
Uma norte-americana, Marianne, de ascendência asiática, viajava de Nova Iorque com o seu namorado. Surpreendentemente ela falava quase correctamente o português. Tinha tido um namorado português durante alguns anos e com ele aprendeu a língua de Camões.

O casal espanhol era de Barcelona, mas não se deu a conhecer muito mais. O mesmo aconteceu com os três alemães.
Os canadianos eram um casal que estavam a fazer a lua-de-mel no transiberiano e poucos dias depois cruzar-me-ia com eles na Mongólia.
O terceiro casal vinha de Londres. Ela, professora de matemática de ascendência indiana e ele engenheiro civil.
Os australianos estavam a fazer aquilo que melhor sabem fazer e que os tornou conhecidos como o povo mais viajante do mundo. Tinham começado bem longe da sua casa, na Europa, em França e depois regressariam a ela a partir de Pequim.
Estava uma boa parte do mundo enfiada numa pequena carruagem.



Burocracia II


A espera pelos passaportes eternizava-se.
Em frente aos edifícios burocráticos e descendo uns quantos degraus, atravessando a estreita estrada maltratada havia um pequeno jardim denso de árvores e de lixo.
Uma sala de espera nem sempre agradável como aquelas em que alguém num hospital, anseia por notícias de um familiar internado.

Mas esta até proporcionava uma boa sombra e dependendo da forma como estavam cortados, alguns troncos, apesar de duros, durante algum tempo davam assentos mais ou menos confortáveis.




Pelo lado direito da estrada e caminhando umas centenas de metros encontrava-se uma mercearia dentro de um pequeno barraco de madeira.
Água, fruta, bolachas e gelados era o que aquela porção de mundo contido na carruagem comprava.
Com o calor e a espera as conversas esvaziaram-se e cessaram-se. Os países formavam-se de novo. Ou em pequenas ilhas isoladas ou agrupados, estabelecendo fronteiras invisíveis entre si.

Um gesto e um assobio vindo de alguém, avisava que os passaportes estavam cá fora. De novo dentro da carruagem e do respectivo compartimento.
Outro olhar fixo sem expressão oscilando durante uns segundos, entre o passaporte e o nosso rosto e de volta para o passaporte. Pouco havia a comparar, mas ele lá sabia. Com cabelo no seu estado normal, sem barba e limpo no passaporte, contra um rosto sujo, cabelo rente, barba de uma semana e roupa sebosa. Seis horas depois voltava a segurar o meu passaporte.
A Mongólia era já ali.

Os mongóis foram bem mais eficazes. Foram necessárias "apenas" cerca de duas horas na Mongólia para os vistos do passaporte serem controlados.
Mais baixinhos, de rostos bem redondos, mais amigáveis e de sorriso que contrastavam com os sisudos russos.
O pessoal das fronteiras eram o espelho dos países a que pertenciam. Os russos herméticos e frios, os mongóis mais espontâneos e amigáveis.



Em casa


Estava oficialmente na Mongólia. A minha casa. A minha casa de campo na Ásia.
Tudo era agradável. País rude, de pessoas rudes, um pouco primitivas, mas genuínas, cheias de generosidade e sorrisos espontâneos. Dos mais bonitos que conheço.

Roupas de roupas garridas e de cores difíceis de identificar que não condiziam entre si e que fariam arrepiar qualquer leitora de uma Vogue ou de uma Elle.
Sapatos descoloridos com fatos de treino. Botas usadas com casacos surrados. Galochas quase rasgadas com camisas  sem botões. Muitos sacos de plástico carregados nas mãos.
Caras de luas cheias, algumas muito coradas e olhos rasgados por todo o lado. O ar era mais fresco e desanuviado. Tal como um restaurante fino e uma tasca onde esta consegue ser mais confortável e descontraída que o formalismo tenso do primeiro.

Mas estava com saudades da Sibéria e da sua taiga infindável. Cerca de metade da viagem estava feita. Senti um aperto no estômago. Afastei o pensamento que o regresso estava mais próximo o mais rápido possível. Mesmo que brevemente, aquele pensamento tinha deixado uma pequena nódoa negra na alma.
As borboletas, essas já queriam voar janela fora.

Mais um pôr-do-sol, mais uma noite sobre carris e na madrugada seguinte, antes de o sol nascer, saía da estação e olhava sorridente para a face da segunda capital desta viagem e de uma das capitais mais confusas e caóticas do mundo: Ullan Baatar.





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