Transmongol, Mongólia - Ulaanbaatar


Ainda hoje me pergunto porquê a Mongólia. Na verdade, a resposta talvez seja: porque ninguém vai lá.
Porque um país para ser atraente não passa nem de longe nem de perto, por ter bons hotéis, estrada e avenidas largas, pessoas que falam inglês ou ruas facilmente identificáveis.
Tudo isto é bom mas mais uma vez não torna um país atraente. São as pessoas locais, a sua cultura a vários níveis, o privilégio de se manter puro e intocado pelo turismo massificado. Pelos sorrisos, pela vontade de ultrapassar quaisquer que sejam os obstáculos da barreira linguística coloca.

Quando em 2008 decidi viajar para a Mongólia tive que pesquisar quase tudo sobre este país.
Não conhecia a sua moeda (tugrik), não conhecia a sua capital (Ulaanbaatar), a sua bandeira ou quais as suas fronteiras.
Só sabia que era um país asiático (Ásia Central), que o deserto de Gobi se situava lá e que se descobriam ossos e esqueletos de dinossáurios quase ao pontapé e que tinha uma figura absolutamente marcante na sua história.
Tão marcante que toda a vida e cultura mongol ainda hoje lhe faz reverência: Genghis Khan. 
O grande unificador da sociedade mongol, o homem que fez os chineses construírem a Grande Muralha da China para o parar. Ele é provavelmente o maior e talvez único orgulho do povo mongol.

A Mongólia está a dar os seus primeiros passos na promoção como destino turístico. É uma área na qual claramente aposta para melhorar a sua qualidade de vida.
É um país de espaços abertos e vastos. O deserto de Gobi e as imensas estepes dominam a Mongólia interior. Cerca de 40% da sua população ainda é nómada.
A sua gastronomia é monótona e pouco variada. Arroz, carne de cavalo, borrego e pouco mais.
Sendo um país interior, os peixes que se encontram no mercado vêm dos seus lagos. Com uma larga percentagem do país ocupada pelo deserto de Gobi, encontrar vegetais frescos e variados é uma tarefa difícil.

Entalada entre dois colossos geográfico, políticos e financeiros, com forte influência da Rússia a norte e da China a sul, leste e oeste, é para estes dois gigantes que a Mongólia se vira nas suas transacções comerciais, onde a industria mineira representa a maior fatia, cerca de 90%, do seu rendimento.
É precisamente através da linha transiberiana, cujo comboio eu tinha saído poucos minutos antes, que a Mongólia tem a sua rota comercial estabelecida.



A Praça Sukhbaatar


Ao reconhecer o rosto de uma cidade que não via desde 2008 senti-me abraçado por ela. Não um abraço quente e acolhedor, mas sim aquele abraço de quem está contente por me rever. 
Foi assim que Ullanbaattar me recebeu.
Aqueles rostos redondos como uma lua cheia, a ausência de regras de condução que constituem a única regra possível, as buzinadelas de aviso, o gesticular frenético das mãos dentro dos carros.

É uma cidade que estranha-se, mas não se entranha.
A primeira impressão é que é uma cidade cinzenta, sem nada que a distinga de muitas outras capitais.
Tem os seus segredos, mas resiste a mostrá-los.
Quase metade da população mongol vive na capital. Dos cerca de 3.2 milhões de habitantes no país, 1.4 milhões vivem na cidade.
Isto torna-a uma das mais capitais mais caóticas e poluídas do mundo a par de Pequim.

Ulaanbaatar, abreviando UB, é uma cidade de vários rostos. Um moderno, que se admira do seu centro do mundo na grande praça Sukhbaatar Square.
Damdin Sukhbaatar foi outro herói mongol que em 1921 proclamou a independência da Mongólia relativamente à China. A sua estátua está bem no centro da praça montando também um cavalo.
A relação muito estreita que os mongóis têm desde há muito tempo com os cavalos e a sua fama como cavaleiros de excepção é bem visível nesta praça.




Em 2013, a praça oficialmente mudou de nome para praça Chinggis Khaan (Gengis Khan), na contínua obsessão e veneração a esta figura histórica. Tudo gira à volta deste nome. Casas, nomes de restaurantes, cafés, lojas têm o seu nome ou uma representação sua pendurada algures numa parede. Até é fácil adivinhar o nome do aeroporto que serve a cidade ou os nomes das vodkas nacionais.
Surpreendentemente a mudança do nome não pegou.
Actualmente, quer entre os locais quer entre os turistas e guias de viagem, a referência é sempre o seu antigo nome, Sukhbaatar.




Sukhbaatar é uma larga praça com edifícios de arquitectura contemporânea de grandes e brilhantes superfícies envidraçadas, com alguns deles ainda em construção. Recordo-me que nenhum deles existia em 2008.
Mais uns poucos anos e de novo sentirei a modernização da cidade e da sua praça a elevar-se e aumentar como os longilíneos arranha-céus que vão nascendo na periferia.
O Blue Sky de arquitectura elegante atrai sobre si a nossa atenção e olhos conferindo um esbelto toque de sofisticação à praça.




O parlamento mongol é imperial. Pelas suas dimensões, pela imensa estátua de bronze de Chinggis Khaan sob um arco alicerçado em duas colunas de mármore com as estátuas do neto - Kublai Khan - e o filho - Ogedei Khan - ao seu lado, ambos montando cavalos.
Uma variante inspirada e até bem conseguida do Lincoln Memorial de Washington dos Estados Unidos da América.




Os asiáticos gostam de acabar os dias nas praças e jardins. Os mongóis não são excepção.
Também eles vêm relaxar, conversar e acabar o seu dia nesta praça. É a altura em todas as pessoas procuram e encontram o seu tempo.
Ela é cruzada em todas direcções. Há quem fale, há quem brinque com crianças, ande bicicleta e esporadicamente de skate. Há quem jogue às cartas, há vendedores ambulantes e num comportamento universal, há velhos sozinhos sentados nos bancos.







À noite a praça que encontra a sua quietude. Pouca gente circula por ela.
Está quase vazia, solitariamente iluminada contrastando com a noite negra.
É a melhor altura para vaguear por ela, de nos sentarmos nas escadas da base do cavalo de Sukhbaatar, virados para o trono de Gengis Khan e ouvirmos o seu nome no bater lento do coração adormecido da cidade.





Gandan, os pombos e os pés gigantes de Buda


Para chegar ao mosteiro Gandan Khiid, outro dos pontos obrigatórios de visita de UB vamos ter que cruzar com um dos outros rostos da cidade e que se opõe fortemente à modernidade de Sukbaatar Square.
O distrito de Chingeltei. É preciso atravessar, aquilo que se pode comparar a uma favela ou um bairro de lata. As casas são feitas de madeira ou chapa de zinco, as vedações de ripas de madeira mal tratadas, muito envelhecidas e pintadas de cores de gosto duvidoso. Os portões e portas não primam pela perpendicularidade. Passa-se por uma guest house - Gana's Guest House - meia inclinada onde dificilmente imagino alguém a hospedar-se lá. E se o seu interior for igual à área onde se encontra...

O piso é de terra batida avermelhada, com lixo espalhado aqui e ali com trilhos esculpidos pelo tempo e por centenas de pés que passam por ele diariamente.
No entanto encontro pouca gente neste trilho, apesar de o ruído atrás das minhas costas me indicar que estava na hora de ponta.
No fim, quando se cruza esta terra de ninguém, voltamos a encontrar movimento e monges de vestes de amarelo torrado, laranja e bordeaux escuro. O mosteiro está muito perto.




É um largo complexo de templos, stupas e mantras por todo o lado. As fachadas são alegres e tal como os monges são coloridas em tons quentes. Laranjas, castanhos, amarelos.
Exactamente o oposto que a cidade na sua generalidade apresenta um pouco por todo o lado.

Impressiona os grandes e densos bandos de pombos bem anafados, por estarem continuamente bem alimentados, que voam ou estão pousados por todo o lado.
Um tapete de penas cinzentas escuras, algumas brancas e azuladas que cobre o chão ou os ares, a arrolhar, a movimentar a cabeça para a frente e para trás, a comer da, ou na mão, de quem lhes oferece milho.




Não é fácil encontrar turistas por aqui. É essencialmente um lugar de locais.
Para quem vem de fora, a favela de Chingeltei funciona como uma fronteira psicologicamente desconfortável de atravessar entre o mosteiro e a parte mais movimentada de UB.
Fumos de incenso, monges, pessoas rezar os mantras passando com as suas mãos e pondo-os a rodar.
No exterior de um dos templos está uma réplica dos pés de Buda, para que as pessoas possam tocar, sentar-se e andar em cima deles.

O budismo é uma religião ao serviço das pessoas e para as pessoas. Dessacraliza-se para poder ser de todos. Não tem intermediários entre quem ora e a quem se ora. Precisamente o contrário da igreja cristã.
Não se pode tocar, não se pode mexer, não se pode falar alto. Só cordeirinhos mansos que obedecem ao seu pastor, que sem parecer é uma figura autoritária que subtilmente gosta de exercer o seu poder sobre o rebanho.




Dois dos tais segredos...


Em frente ao State Department Store, um excelente e ecléctico local para comprar recordações da Mongólia de última hora, com um misto de industrialização e de genuinidade, existe um dos segredos que a cidade guarda para si: um monumento aos Beatles!
E lá que estão os Fab Four, numa pequena praça, esculpidos em bronze sobre uma parede de tijolos em forma de uma guitarra
Este monumento/ memorial criado em 2008 tem um duplo significado. O primeiro é óbvio. Um tributo aos Beatles e à sua música. O segundo, simbólico, é uma homenagem às liberdades que existem no Ocidente e à mãozinha que os Quatro de Liverpool deram ao estabelecimento da liberdade na Mongólia.
No lado oposto está representado um jovem de cabelo comprido a tocar guitarra sentado numas escadas. Na sua guitarra ostenta o símbolo da anarquia e da paz. Precisamente o que a juventude das décadas de 60 e 70 procuravam um pouco por todo o lado. Incluindo os mongóis, claro.







A Academia Nacional de Teatro e Drama é outro segredo mas menos guardado.
Desvenda-se no boca a boca. A Academia tem ao longo do verão, exibições culturais - dança, música e cantares - da Mongólia para inglês ver.
Se esta expressão usualmente tem um carga pejorativa e está normalmente associada mais a artificialidade e a mais uma maneira de esvaziar os bolsos de quem lá vai e menos a genuinidade cultural do local que visitamos. Neste caso não. O preço é barato e a pureza do que é exibido em palco é convincente.

Aqui, nestes espectáculos sente-se que há a vontade de verdadeiramente exibir, mostrar, aquilo que é a cultura mongol nas suas várias vertentes.
Saber que após cinco anos este teatro ainda existia e ainda estava em funcionamento com espectáculos diários entre as 17 e 18 horas fiquei super feliz. Tinha sobrevivido aos anos e os turistas continuavam a descobri-lo.

Era a oportunidade de rever um dos momentos mais bonitos de Ulaanbaatar de 2008.
Fiz questão de assistir ao espectáculo. Pouco tinha mudado, reconheci algumas danças e músicas. O canto gutural, o folclore e os fatos coloridos ainda faziam parte do cardápio de iguarias fornecidas aos ocidentais que assistiam a ele.
Quando saí sentia o mesmo fascínio que tinha saído da primeira vez. Ir a este teatro é como ir ao Museu de Orsay de Paris. É para ir todas as vezes que se vá lá.


Uma escapada ao mundo ocidental


Já o tinha feito anteriormente.
Para fechar uma estadia em UB ou acenar um adeus à capital nada melhor que fazê-lo no Grand Khan.
Um irish pub com tudo aquilo que representa: fachada verde escura, cerveja a rodos, muito ketchup, mostarda e mais ainda batatas fritas e muito especialmente a omnipresente Guiness.
Televisores em quase todas as paredes a passarem jogos da Premier League com muita gente colada a eles e tanto mais a vibrarem quanto maior a quantidade de cerveja bebida.

Ambiente escurecido, parcamente iluminado, mesas e cadeiras estofadas, de madeira escura, muita gente, muita conversa em voz alta e muitos empregados a circular.
Pode-se pedir também tudo aquilo que esperamos encontrar nos bares irlandeses e até comida vegetariana. Saladas há com fartura.
Tudo quanto é turista ocidental se encontram aqui quando as cores do dia começam a esbater-se.
São eles que estão em maior número, até porque a maior parte dos mongóis não tem grande possibilidade de lá entrar.


Ulaanbaatar - estranha-se, não se entranha, mas fica em nós.


Ulaanbaatar esgota-se com alguma rapidez. Em pouco tempo conhece-se o essencial.
Além do exotismo de uma cidade asiática, Ela é razoavelmente interessante e segura.
Ao entardecer, no caos do trânsito e quando o número de pessoas nas ruas está no seu pico, é fácil encontrar alguém que nos faz sentir desconfortável ao andar insistentemente ao nosso lado ou pouco atrás de nós.

As regras do bom senso dizem para colocarmos os nossos pertences, não nos bolsos de trás mas nos da frente, mochilas e sacolas não nas mãos ou nos ombros, mas antes cruzados sobre eles. Não deixarmos coisas em cima das mesas ou apenas colocadas nas costas de uma cadeira porque é um convite aberto a alguém que queira servir-se do alheio.
Andarmos atentos, apenas com o dinheiro que pensamos ser necessário, não dar nas vistas e se necessário procurar refúgio numa loja ou café.
Nada que não fizéssemos no nosso país.

Há quem diga que o maior problema de Paris são os franceses, em Ulaanbaatar é precisamente o contrário.
São os mongóis que trazem encanto e colorido ao cinzentismo que caracteriza a cidade e o país. É o seu sorriso e espontaneidade que enchem a cidade.
O que se sente na capital da Mongólia sente-se mais ainda na restante Mongólia. À medida que nos afastamos dos centros urbanos, a hospitalidade, o sorriso fácil e encantador torna-se mais genuíno, sincero e mais contagiante.

Vale a pena vir à capital de um dos países mais isolados da Ásia.
À medida que o tempo for passando, este privilégio vai-se esfumando cada vez mais e concretizando-se também cada vez mais em dinheiro, artificialidade e massificação. Não só UB, mas pior que UB é o próprio país e toda a única vivência que ele pode oferecer.

Neste tipo de países, à medida que o tempo passa, trás com ele evolução e benefícios para os seus habitantes. Mas para quem viaja e os quer conhecer intimamente, a evolução e a massificação da sua procura enquanto destino turístico, traduz-se numa única e temida palavra: descaracterização.


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