Transmongol, Mongólia, PN Gorkhi Terelj - o parque do tempo suspenso


A Mongólia tem esta particularidade. Fora dos centros urbanos, imperam os sentidos. Precisamos de todos eles.
As cores, as texturas, os seus aromas, escutar o silêncio, provar a frescura da noite.
É talvez o país mais sensorial que conheço. Mas o sentido que mais precisamos não são os cinco, é o sexto. Aquele que não se define.
Mas não na forma de intuição que não se explica, quase uma premonição. Não. O sexto sentido é aquele que potencia e eleva os outros cinco a um só.
Não é um sentido vindo do exterior mas bem fundo do interior.

Como tudo o que é belo e que permanece belo especialmente quando fechamos os olhos, a mente torna-se introspectiva. Recolhe-se.
Os lábios selam-se, os pensamentos soltam-se mas não se atropelam. São harmoniosos.
Nestas alturas fecho os olhos e olho para o caleidoscópio de cores espectrais de formas irregulares e irrequietas que fluem por dentro das minhas pálpebras.
Surge o sexto sentido. Torno-me ausente de mim próprio. Flutuo, rodopio e sinto vertigens. Sinto o Eu. Deixo de pertencer à Terra e entrego-me ao pulsar de Gaia.
Só a Mongólia, Machu Picchu e quando as montanhas me deixaram subir aos seus topos, é que são capazes de me metamorfosear desta maneira, de sentir esta transcendência.

Quando em 1924 perguntaram a George Mallory porque queria tanto escalar o monte Everest, ele respondeu da maneira mais singela possível:" - Porque está ali."
À tal pergunta que frequentemente me fazem porque é que gosto tanto da Mongólia, se não quiser alongar-me na resposta respondo parafraseando Mallory: "- Porque sim."



A suspensão do tempo


O meu corpo balouçava frequentemente e de uma maneira brusca para a frente e para trás. Chegava mesmo a bater com a cabeça no vidro.
Isto durou umas quantas horas desde que a carrinha branca, uma desconfortável e acanhada van, deixou o centro alcatroado de Ulaanbaatar até entrar na sua periferia onde o alcatrão é substituído gradualmente, como um degradé, por buracos cada vez maiores, até se tornar uma miragem.
Uma manta que vai sendo roída e roída por traças ao longo do tempo.

No PN Gorkhi Terelj o tempo abranda à medida que o tapete verde húmido se prolonga para além das árvores.
A modernidade artificial dos edifícios da capital volatiliza-se no confronto com as montanhas e o ruído urbano é abafado pelas folhas que murmuram segredos ao vento.
Sento-me na erva indiferente à humidade que me encharca as calças. Saboreio e apalpo a beleza da tranquilidade desta paisagem.
Apetece-me mergulhar na neblina que se estende à minha frente. Um véu sensual que tapa mas sem esconder o vale e as colinas que o rodeiam.




A temperatura é baixa mas não excessivamente. É aquela temperatura que nos mostra que estamos vivos. As sensações do corpo ficam mais despertas com o frio. Ficamos mais conscientes de nós próprios.

O chefe da família que me irá acolher juntamente com alguns passageiros que estavam comigo no transiberiano chama-me.
Faz a distribuição pelos dois gers que tem disponíveis para alojamento. Peço-lhe que fique num que quando se abre a porta vê-se o trilho castanho de terra batida que passa pela famosa Turtle Rock. Uma rocha que muito sugestivamente tem a forma de uma tartaruga.




No ger que me foi atribuído, o mesmo que tinha pedido, três fumadores, parceiros de ger, estão cá fora encolhidos, juntinhos como três animais que se pretendem aquecer uns aos outros.
Divirto-me com a sua figura, mas tenho pena deles.

Primeiro porque o fumo dos cigarros está a mais naquele ambiente de atmosfera imaculada, segundo, porque ao estarem dentro do ger, os seus sentidos estão cegos à aquela tranquilidade que os poderia abraçar. E não há maior cego que aquele que não quer ver.




Num banco de madeira corrido um urban sketcher desenha destramente o vale, a Turtle Rock, o trilho e os cavalos que por lá trotam. Peço licença e sento-me ao seu lado.
Os meus olhos alternam entre o pequeno caderno e a paisagem à minha frente. Espreito e admiro a sua mão a voar pela folha de papel rasgando o branco com traços aparentemente aleatórios que ao fim de algum tempo fazem todo o sentido.
Fascina-me a capacidade de conseguir retratar em pouco tempo, a essência do que se vê. Paisagens, um edifício, um rosto ou uma rotina do dia a dia.
Sou absolutamente incapaz de fazer qualquer coisa que seja digna de se chamar desenho.




Passeio lentamente por aquela suspensão do tempo que o vale proporciona. Gado, pássaros, árvores, dois ou três cães que por ali andavam e um pequeno riacho que me chamava mas que não se deixava ver.
As gotas da humidade densa estão precariamente penduradas nas cercas de arame farpado dos recintos onde estão os animais. Outras pingam das folhas das árvores e fazem brilhar a erva que os animais pastam.

Inspiro profundamente esta atmosfera tranquila que me submerge, saboreio cada molécula. Sinto dentro de mim as suas cores, os seus sabores, as suas texturas.
À noite as estrelas são incontáveis. A Via Láctea, aquele arco leitoso que cruza os céus de uma ponta à outra, está gloriosa.


Duas caminhadas e um mosteiro


Levanto-me cedo.
Quero ser dos primeiros a sentir o orvalho matinal e a ver os gers ganharem vida. Não vejo o sol a nascer porque a neblina persiste no horizonte. O dia espreguiça-se lentamente nas horas matinais. A temperatura sobe aos poucos e poucos e um tímido sol surge.

Nas costas do acampamento, no lado oposto à Turtle Rock, um trilho convida à caminhada. Vou em grupo. Enquanto o percorremos descubro o pequeno riacho do dia anterior.
Passo por rochas, por gado, por cavalos. Ele conduz-me ao seu segredo. Ao longe um mosteiro budista está encurralado pelas montanhas.
À medida que o trilho sobe e se aproxima do mosteiro os sinais vão surgindo. Lenços roçados pelo tempo pendurados nas árvores, imagens e oferendas a Buda.




O mosteiro está vazio. Ninguém anda por lá mas a porta cor bordeaux com um lenço amarelo pendurado no puxador que dá cesso ao seu interior está fechada. De poucas falas e vindo do nada um senhor surge e abre a porta.
De novo estão presentes os lenços brancos, amarelos, azuis e vermelhos, tapetes de cores intensas decoram e forram o seu interior. O chão e o tecto estão atapetados com as mesmas cores.
O altar onde se encontra Buda, está intensamente decorado numa explosão de cores. É difícil distingui-lo naquele ambiente excessivamente colorido que fere e confunde os olhos.

Os inevitáveis mantras estão presentes cá fora. Alguns estão tão usados que se pode espreitar para o seu interior. O exterior é vermelho, a oração a azul.











Rodo os cilindros um a um. Gosto de o fazer e é prático. Não nos obriga a decorar orações à toa. Por cada rotação, uma oração.
Se sentirmos bem cá dentro o gesto da nossa mão que os faz rodar, que no seu interior se encontra uma oração até acredito que o resultado que é uma oração sincera.
É a intenção e a força interior do gesto que conta. Não é o conteúdo da letra de uma oração rezada como se fosse uma canção ou uma ladainha dita à pressa em modo automático e com palavras enroladas umas nas outras em tom monocórdico que faz a oração.

O caminho descendente está ladeado por uma boa centena de cartazes, cada um deles está numerado, com ditos budistas. Rodando uma roda da fortuna calha-nos um número. Esse é o número do nosso cartaz. Noventa e nove.
Desço e procuro o meu cartaz. Gosto da frase que me foi destinada. Vem a calhar, Versa sobre viagens:

"Tu viajante que vais em direcção à terra do teu renascimento, acumula méritos tal como armazenas comida para uma longa jornada."




Uma das colegas de caminhada coube-lhe em sorte o oito e por curiosidade fui também à procura dele. O cartaz não é dos mais simpáticos. Um aviso de conteúdo bem menos optimista e inspirador.

 "Cuidado! Quando a morte se aproximar, os milhares de irmãos que te rodeiam serão inúteis. Para esses tu podes ter feitos coisas terríveis."

Talvez tivesse valido a pena tentar rodar a fortuna mais uma vez...





Se virarmos costas ao caminho "budista" e contornarmos pela esquerda a Turtle Rock, descobre-se outro trilho.
Sobe-se um pouco e aproximamo-nos do que parece ser uma localidade fantasma.
Está abandonada, mas no entanto não apresenta a degradação que o tempo provoca quando não cuidamos dos seus efeitos quando à solta sem rédeas. Provavelmente em vez de abandonada estará apenas em hibernação. A natureza ainda não reclamou aquele espaço que lhe foi retirado.

Ruas sem movimentos, casas vazias. Um campo de basquetebol abandonado, uma escola sem alunos, uma tasca sem cheiro a vinho, lojas de portas fechadas e dois cães que brincavam um com outro sem ninguém que olhasse por eles.

Continuando a subir de novo encontramos paisagens rochosas e vales verdes. Do topo vejo os meus colegas de viagem lá ao longe a caminharem na sua pequenez perante o vale que atravessavam.
Somos todos minúsculos nesta paisagem. Corro para eles durante umas boas centenas de metros para os apanhar. Tal como eles, o meu tamanho diminuí à medida que desço. É uma sensação que sempre me agradou. Faz-me sentir que eu pertenço ao planeta e que estou às suas ordens e não ao contrário como tanta gente pensa. E mal.

Se a primeira caminhada tinha uma componente espiritual, mas não em tom de peregrinação, este segundo trilho era unicamente cénico. Ambos em registos diferentes provocavam as mesmas sensações e ambos dispensavam as palavras.
Sente-se mas não se descreve. Não porque as palavras sejam curtas, mas apenas porque não são necessárias.




A noite cai, e de novo, sobre mim, sobre os gers e sobre o mesmo silêncio, pousa no mesmo céu exuberante estrelado.
A minha casa de campo asiática, a “minha” Mongólia, vasta, livre, pura e de belos segredos que fluem soltos, mas escondidos algures entre as estrelas e a areia, continua linda, linda.


Comentários

  1. Olá Pedro Costa.
    Ao procurar informação sobre a rota Transiberiana, encontrei o seu soberbo blog, e nele pude viajar, um pouco, antecipadamente, por tão longínquas e arrebatadoras paisagens, quer geográficas quer humanas. Quero fazer esta viagem, mas ainda não sei quando. Estou procurando toda a informação possível que me possa ser útil para a sua realização. Neste sentido, e porque também tenho um sentimento muito especial pela Mongólia, gostaria de lhe perguntar o seguinte: O que é necessário para conseguir passar uns dias num GER, por exemplo, em Turtle Rock e poder vivenciar as proximidades? O bilhete do comboio permite sair numa localidade, ficar alguns dias e depois seguir viagem apanhando outro comboio? Como fez quando parou em Turtle Rock?
    Há muitas questões que gostaria de lhe colocar sobre a organização da viagem: saberes de quem já a realizou e que podem ser úteis a quem a pretende realizar.
    Se entender pertinente e quiser partilhar algumas dicas sobre a sua experiência... ficaria muito agradecido por as poder usufruir. Muito obrigado. Deixo um abraço.

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  2. Oi Mário. Obrigado pelas tuas palavras. :)
    Nesta questão de Transiberiano o mais prático é usar uma agência de viagens. A logística é pesada.
    Os russos não falam inglês, discutir nas bilheteiras é um inferno linguístico e um teste à paciência.
    Uma agência gere tudo. A questão dos bilhetes para as várias paragens e respectivos alojamentos.

    Creio que o Parque Gorkhi Terelj é uma paragem comum às várias agências aventura nacionais e internacionais que operam o TS. O alojamento é mesmo num Ger.

    Mas o TS não é a única maneira de visitar a Mongólia. Para a vivenciar em pleno, o melhor é viajar umas duas ou três semanas exclusivamente pelo país.
    Sempre em gers e pontualmente hosteis. Sentes em primeira mão e genuinamente a alimentação local, religião e tradições culturais, a grande hospitalidade dos mongóis e os seus sorrisos únicos e paisagens fabulosas. Não só do deserto de Gobi, mas das zonas montanhosas.

    Mais uma vez podes contactar uma agência aventura, ou contactar na capital Ulan Bator que agências locais estão disponíveis e que circuitos pelo interior da Mongólia oferecem.
    Viajar pelo deserto de Gobi, só mesmo com condutores locais. Eles conhecem o deserto como a palma das suas mãos.
    A Mongólia é muito marcante. E o melhor de tudo é que é um país que ainda está pouco tocado pelo turismo massificado. Conserva a sua genuinidade.

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