A China é um gigante com pés de barro.
Este país em conjunto com os outros BRICS suportaram e atenuaram no mundo, os efeitos da crise de 2008.
É um gigante de facto, mas os seus pés de barro são feitos de exploração de mão de obra barata, mão de obra infantil, falta de respeito pelos direitos humanos, dos animais, liberdade de imprensa e de expressão e falta de democracia.
Um país em que a invisível pata negra do regime comunista se faz sentir em todo o lado.
Um comunismo mais selvagem que se pode imaginar. Por baixo do manto comunista e totalitário está um capitalismo agressivo e imperial. Busca mais riqueza, mais poder e acima de tudo mais influência.
Portugal está debaixo desta pata. Mas não está só. Os Estados Unidos, parte da Europa e muita da África têm estas garras encravadas nos seus destinos.
Um país que graças à política do filho único, criou uma das maiores disparidades numéricas entre homens e mulheres. Tradicionalmente para os casais chineses, são os filhos e não as filhas que garantirão o seu sustento na velhice.
Portanto quando o primeiro e o único filho que podem ter... é uma filha, o seu destino é muito, muito triste.
A China é agora um país masculino.
Pensar China é pensar na destruição de um outro país, que hipocritamente o mundo ocidental olha para o lado quando se fala nele. O Tibete. A destruição de um povo, de uma cultura, da sua religião e logo da sua identidade.
A China está a transformar o Tibete numa massa amorfa, desinteressante e inútil, de chineses e chinesices que não têm nada a ver com o local e filosofia do país que ocupam.
O Tibete, um país independente, está ser tornado numa reserva natural minúscula de tibetanos, rodeado de chineses por todo o lado.
Da mesma maneira que se destrói o habitat natural dos grandes felinos e depois ficamos felizes, porque afinal os salvámos ao dar-lhes generosamente um pretenso parque natural só para eles.
Apenas a algumas horas de entrar na China, era isto que me passava pela cabeça, à medida que a paisagem mongol passava pela janela.
Isso e a pesada sensação de que a viagem estava a cerca de 24h de acabar.
Subi os degraus para o comboio pesarosamente consciente que seria a última vez que o fazia.
Seria igualmente
a última noite que passaria nele e seria também a última fronteira que iria
cruzar nesta viagem. Começava a detestar a palavra última.
De novo havia
vários estrangeiros na minha carruagem. As conversas eram mais curtas e parcas
em palavras. Os corredores estavam mais vazios que o normal, os compartimentos
mais cheios que o normal.
Os livros
voltavam a sair das mochilas para as mãos. Excepto o meu, do convencido e chato Paul Theroux que permaneceu no
fundo da minha mochila até chegar a casa.
Para todos nós o
fim aproximava-se. Os rostos fechados e os semblantes mais sérios e
contraídos assim o diziam.
A caminho do
terceiro e derradeiro país do transiberiano, a China, a paisagem tendia
lentamente a urbanizar-se e a industrializar-se.
Parece que as paisagens sabem quando se aproximam e reconhecem as fronteiras. Sempre imaginei isso nas diversas viagens feitas.
Ao longo dos
quase 8000 mil quilómetros de carris e dos países que ficaram lá para trás, estava na dúvida
quem marcava as fronteiras.
Se era a vontade
humana que nas linhas que traçava desenhava os limites dos países, ou se a
paisagem a isso obrigava.
Até à fronteira
chinesa, a estepe foi quem mais ordenou.
Mas lentamente a
esta era quebrada pelos sinais da indústria de minérios, por frequentes
povoações de média dimensão, mais estradas, mais carros.
O sol punha-se no horizonte. Recortava os tectos dos edifícios e os postes de electricidade. Fazia brilhar de laranja o frio cinzento do aço dos carris.
O número de locomotivas com vagões de carga voltava a aumentar desde que tinha saído da Rússia e os parques industriais mostravam a sua face.
O número de locomotivas com vagões de carga voltava a aumentar desde que tinha saído da Rússia e os parques industriais mostravam a sua face.
Os rostos avermelhados e castiços de lua cheia dos mongóis iam sendo substituídos pelo maior número dos rostos pálidos e alongados dos chineses. A corpulência dos primeiros, cedia à fragilidade e magreza dos segundos.
Os mongóis
viajavam leves e simples. Solitários ou em casais em que as mães seguravam os filhos ao colo.
Pequenas mochilas, poucos volumes,
essencialmente sacos de plástico de extremidades atadas bem carregados e volumosos.
Os chineses por seu lado carregavam mais bagagem e também mais anafada. Circulavam em grupo ou em famílias
maiores.
Olhando para uns
e para outros, claramente os mongóis têm uma vida mais difícil e espartana
que os seus vizinhos chineses.
A vida dura
versus a vida mais confortável, a simplicidade contrapõe-se à exuberância, a
calma e o silêncio mongol contra a estridência e os risos despropositados dos
chineses.
Por volta das
23.00h, a fronteira.
A bitola, a
largura entre carris, mongol e a chinesa são diferentes. Uma fronteira eficaz. É
fisicamente impossível os comboios passarem de um país para o outro.
Para contornar
esta impossibilidade só há uma hipótese. Trocar os rodados, os bogies das
carruagens. Mudar a distância entre eles para que sejam compatíveis com a
mudança de bitola.
Para uma operação tão
mecanizada, o tempo de a executar é imenso.
Outro comboio que
estava do lado ao oposto ao nosso permite-nos ver o que está a acontecer ao
nosso.
O comboio entra para
um hangar. Sem ninguém sair para o exterior, todas as carruagens são
desarticuladas umas das outras. Já separadas, uma a uma, são elevadas por
quatro macacos hidráulicos cuja subida é tão lenta e
suave que não nos apercebemos que
estamos a subir. Ao fim de algum tempo de dúvida se ela está a subir ou não é
que percebemos que estamos mais elevados relativamente à plataforma.
No outro comboio acontece o mesmo mas estão mais atrasados. Quem viajava lá ia em primeira classe.
Compartimentos de duas camas. Interiores decorados e até casa de banho
privativa.
Entre nós discutíamos quem estava melhor. A privacidade de duas pessoas num compartimento ou quatro como
no nosso caso. Uma casa de banho partilhada por uma carruagem inteira ou uma
para duas pessoas. Havia que
defendesse o conforto.
Pessoalmente não tinha dúvidas. Segunda classe. Quatro pessoas por compartimento e uma casa de banho
por carruagem que me obrigava a levantar-me por volta das seis da manhã para a apanhar
razoavelmente limpa. Quando viajo não pretendo
ter o conforto asséptico da minha casa.
Um grupo de
trabalhadores retira os rodados por baixo da carruagem e um cabo de aço puxa
todo o conjunto ao mesmo tempo para fora do hangar.
Algum tempo depois
esse mesmo cabo de aço puxa os novos, que são posicionados por baixo das
carruagens. Estas baixam uma a uma e ficam assentes nos novos bogies e na nova
linha.
Somos puxados para
fora do hangar e por entre um número inacreditável e interminável de apitos
estridentes e constantes empurrões, as carruagens são articuladas de novo entre
si.
De novo em
movimento e poucos minutos depois estamos na China. Foram mais de três horas
para chegar até aqui.
A recepção na China é
completamente marcial. Uma música de imediato começa a tocar nos vários altifalantes
da estação. Ou era marcial ou era de propaganda para glorificar a chegada a este país.
Rapidamente ao longo
do comboio e em cada porta das carruagens está um oficial vestido de verde, rígido de
rosto inexpressivo. Uma linha de soldadinhos de chumbo perfilava-se ao longo da plataforma.
Pela primeira vez tinha
providnitzos. Dois chineses de rosto macilento e alongado. Por baixo dos olhos cavados, longas olheiras pendiam por baixo deles. Inexpressivos como os soldadinhos de
chumbo que tinha visto na estação. Nem simpáticos nem antipáticos. Não falavam, não
cumprimentavam. Sempre ausentes. Para eles, nós não existíamos.
A carruagem estava
silenciosa. A noite passava ligeira pela janela. Um casal falava muito baixo entre
si numa extremidade do comboio encostados a uma janela ligeiramente entreaberta.
Os meus companheiros de
compartimento já estavam deitados há algum tempo.
Sentei-me no chão da
carruagem. Por baixo de mim estava o mesmo ritmo metálico que soava desde
Moscovo. Os mesmos solavancos, o mesmo ar a passar pelas janelas e ocasionalmente
o mesmo apitar do comboio.
O casal entrou para o
compartimento e tinha agora o comboio só para mim. Baixei a cabeça e senti o seu
pulsar. O abraço que ele me dava. Despedia-me dele e ele de mim. Era a última
noite que passávamos juntos. Estava melancólico quando me deitei.
De novo levantei-me cedo. Queria aproveitar a senha do pequeno-almoço que tinha sido distribuída para evitar a confusão do pequeno almoço na carruagem-restaurante. O que eu pensei, metade do comboio também pensou.
Muita gente, quase
todos ocidentais. Os criados não falavam uma palavra de inglês. O pequeno
almoço era simples. Chá ou café, torradas com ou sem ovo e pacotinhos
individuais de compota.
De novo uma paisagem bem
diferente. Montanhas atrás de montanhas, tudo verde e muitos túneis.
Das três paisagens com que me tinha cruzada esta paradoxalmente era a mais
monótona.
Bonita mas monótona.
As montanhas eram altas, tapavam a nossa visão que era limitada pela altura da
janela. Foi assim até poucos quilómetros de Pequim.
Alguns viadutos, um pequeno lago artificial e alguns carros anunciavam a chegada à grande capital chinesa.
Alguns viadutos, um pequeno lago artificial e alguns carros anunciavam a chegada à grande capital chinesa.
Os macilentos provinidzo tiravam as roupas das camas e penduravam-nas nos corrimões da carruagem. Era desolador vê-los assim pendurados. Os compartimentos estavam despidos.
O longo tapete que
cobria o chão da carruagem tinha sido retirado. Este estava agora frio, exposto e
desconfortável. As casas de banho estavam fechadas. A paisagem tinha deixado de
ser paisagem. Tudo nos dizia adeus.
Uma sensação de deja-vu em sentido contrário passava pela minha mente e olhos. Uma aproximação lenta, hesitantemente, em pequenos soluços, ele imobilizou-se.
Os quase oito mil
quilómetros tinham acabado, devorados pela grande serpente de ferro. Imóvel, ela
descansava agora.
Apesar de ter
passado por muitos comboios e trocado de várias vezes de máquina, para mim tudo
tinha sido uno. Um só comboio, uma só máquina, uma só viagem.
Sentia um
profundo carinho por aquele comboio que representava todos os anteriores.
Se umas semanas
atrás em Moscovo, o meu primeiro passo a subir o primeiro degrau das escadas
alongou-se no tempo para saborear intensamente o início de uma viagem altamente improvável
de ser realizada, o meu último passo a descer do último degrau alongou-se para eternizar
a viagem que tinha acabado de ser feita, para que ela não acabasse, ficasse
suspensa no tempo.
Quando pisasse o
alcatrão da plataforma com os dois pés tudo tinha acabado. Agora estava no
limbo. Um pé no comboio, um pé na plataforma. Acabou.
“Mas que seja infinito
enquanto dure” escrevia Vinicius de Moraes no seu Soneto de Fidelidade.
É-me impossível ficar indiferente a este post! Tendo feito uma viagem também bastante longa (mas não tanto!) de Pequim para Lhasa de comboio, sendo também um pouco train lunatic, e tendo tido a oportunidade de verificar todos esses contrastes que referes, tenho que dizer que me revejo inteiramente na forma apaixonada com que descreveste esta viagem! Que grande experiência! Obrigada e bem hajas!
ResponderEliminarHá algo de mágico no comboio que o torna muito especial. Seja numa grande ou pequena viagem. A paisagem que passa na janela, aquele clac clac ritmado dos rodados nos carris que nos embala.
ResponderEliminarÉ difícil explicar o porquê desta atracção pelo comboio. É assim. É apaixonante. Sente-se :)
http://ventonocabelo.blogspot.pt/