Drobak, Noruega - hibernação

Num forum de viagens do Facebook, disseram-me que Drobak estava a cerca de 35 km a sul de Oslo. Pouco mais de meia hora  de autocarro.
Que era uma pequena cidade piscatória e muito pitoresca. Tinha uma paisagem sobre o fiorde de Oslo e oferecia um bom contraste com a urbanidade da capital.
É um popular destino veranil e mantém ainda as casas coloridas dos século XVII e XVIII feitas de madeira. O seu centro histórico tem sido preservado e tem o mesmo aspecto de há cem anos atrás.

Drobak desempenhou um papel relevante na Segunda Guerra Mundial.
Foi nesta cidade, nos estreitos do fiorde de Oslo que foi afundado o navio cruzador da força naval nazi, o Blüncher, que permitiu a Oslo preparar a sua defesa, apesar de mesmo assim esta ter sido atacada, e organizar a fuga da família real.
Existem espólios de guerra deste episódio. Uma das duas maciças âncoras do navio alemão está em Drobak no estreito do fiorde, a outra em Oslo.

Não faltavam motivos para ir lá. Uma manhã ou uma tarde seria suficiente para conhecer esta pequena cidade.
E tinha a vantagem de a paragem onde se apanhava o autocarro e este iniciava o trajecto para Drobak, estar literalmente a cerca de cem metros do meu hotel.






Em viagem gosto de começar os dias bem de manhã.
Ficar na cama é um desperdício de oportunidades, mesmo quando as temperaturas máximas esperadas para o dia são negativas.
Por isso eram sete e meia da manhã e com um pequeno almoço digno de um abade, estava na paragem.
O motorista do primeiro autocarro disse que aquele era um expresso e que o bilhete seria mais caro.
Acrescentou que se eu não tivesse pressa, o autocarro a seguir, meia hora depois, era mais barato. E se comprasse o bilhete no supermercado da esquina também sairia mais barato que lá dentro com o motorista.
Foi o que fiz. Comprei e esperei.

Ronceiro, cansado e quase vazio, o autocarro progredia lentamente pelas estradas estreitas, quase sem trânsito e marginadas por um palmo de neve. 

Os fiordes estavam congelados onde os estreitos eram mais pequenos ou formavam pequenas baías. A espessura do gelo era suficiente para dar confiança a quem andava por cima dele.
Pescadores abriam um buraco no gelo e ficavam sentados à espera de uma fisgadela. Motas de neve andavam de um lado para o outro. E à semelhança dos nossos antepassados há milhares de anos, as pessoas atravessavam as línguas de gelo para chegar mais depressa ao lado oposto.


Chega-se a Drobak antes de lá chegar.
As tabuletas marcam Drobak, mas precisei de alguns minutos e um par de paragens, para ter a certeza que lá tinha chegado.
Sabia que tinha que sair na última paragem. Mas a última era mesmo a última. Demasiado até. Um pequeno largo redondo e cinzento já nos confins da cidade.
Toda a gente já tinha saído antes. Só eu teimosamente estava lá dentro.
Aquele largo é onde os motoristas são substituídos e preenchem a papelada. E foi isso, após ter olhado para mim pelo retrovisor, que ele me foi explicar.

Cá fora, o choque de temperatura foi imediato. Não só com a temperatura do interior do autocarro, mas também com a temperatura de Oslo.
Em Drobak estava mesmo frio. O mosquetão pendurado na minha mochila com um termómetro incorporado marcava uns afiados -12ºc. O mínimo dele é -15ºc.

As ruas tinham uma fina película de gelo que o sol ainda não tinha rompido, o que tornava uma aventura algo perigosa caminhar nelas, especialmente nas mais inclinadas. Exactamente o que tinha que fazer para chegar ao centro da cidade.




Não havia vivalma. Tudo fechado.
Supermercados, cafés, a igreja, galerias de arte e um dos ex-libris da cidade, a Casa do Natal. Ninguém cruzava o largo e o parque de estacionamento estava vazio.
As cores frescas e vivas das casas, os pequenos jardins cuidados, as cercas de madeira que pareciam ter sido acabadas de fazer, as portas fechadas, pareciam ser um contra senso com o que via. Não havia ninguém para entrar ou sair. Ninguém para apanhar flores, ninguém para tirar e pôr as cercas nos seus sítios
Drobak estava surrealmente vazia.

Até os patos boiavam indolentes e adormecidos nas águas escuras da marina. Apenas alguns pássaros esvoaçavam desafiando o autoritarismo do silêncio.
No pontão, três jovens sereias de corpos sedutores, tagarelavam entre si em voz alta e despreocupadamente.
Apenas eu escutava os seus descuidados segredos.




John também os poderia ouvir, mas não estava interessado. Foram os seus clics chamaram a minha atenção.
Fotografava alguns patos e depois escrevia algumas notas num caderninho de bolso.
Era holandês de meia idade com uma longa barba sobre o queixo.
Tinha uma estufa de flores a cerca de cem quilómetros de Drobak e de vez em quando vinha até à Noruega para ver como as coisas estavam a correr.
Quando me viu pediu perguntou se podia usar a minha lente grande.
Perguntei-lhe porquê e respondeu que queria ver os códigos das anilhas de alguns patos que estavam alguns metros mais afastados. A sua lente não permitia ter uma imagem nítida das anilhas.

Ele com aqueles códigos inseria numa página específica na internet e ficava a saber qual o trajecto percorrido por aquelas aves através de outras pessoas que tivessem observado o mesmo código e o tivessem inserido nessa página.
Uma comunidade de pessoas espalhadas pelo mundo inteiro faziam aquilo por hobby.
Explicou que apesar de parecerem patos, alguns deles não o eram, mas pertenciam à mesma família. Disse os nomes de alguns dos que boiavam por ali, que infelizmente não os fixei, e de onde eles poderiam vir nas suas migrações.
Dei-lhe o código do dito pato que não era pato em que estava interessado e perguntei-lhe se sabia porque a cidade estava tão vazia.
John disse que não sabia. Mas que gostava assim, porque os patos não fugiam e ficavam mais próximos dele.

Ele foi-se embora e eu fiquei mais uns minutos ali.




Atravessei o largo central, passei pelo cemitério da igreja cinzenta construída em finais do séc XVIII, também ela feita de ripas de madeira e percorri parte da bucólica linha da costa.
Os caminhos estavam meio cobertos com neve e gelo que estalava debaixo dos meus pés.

O fiorde estava polvilhado de neve. Conseguia acentuar e transmitir ainda mais calma à atmosfera de ar frio e azul intenso.
Como manda a lei do Inverno, as árvores estavam praticamente despidas e gentilmente acompanhadas de candeeiros e de alguns bancos de jardins que permitiam ver as encostas do fiorde.
Os bancos estavam demasiado gelados para serem confortáveis e o frio desaconselhava que o corpo estivesse parado durante algum tempo.




Quando parava de caminhar o silêncio imperava e até as brisas se curvavam perante ele.
Tudo acentuava a estranha sensação de ser de ser a única pessoa daquela área.
Drobak era uma colorida, agradável e gélida cidade vazia.

Finalmente alguém começava a atravessar o largo.
Uma senhora vestia um blusão azul claro com um saco verde em cada uma das mãos protegidas por luvas amarelas. Se ela fosse feita de ripas de madeira confundia-se com as casas vizinhas.
As suas mãos causavam inveja às minhas. As minhas protestavam do frio já há algum tempo, mesmo que bem enfiadas no fundo do blusão. As luvas tinham ficado esquecidas no hotel.

- Bom dia.
- Bom dia.
- Porque é que a cidade está tão vazia? Não se vê ninguém nas ruas. É feriado?
- Não. Em Drobak no inverno, por causa do frio, nós começamos a trabalhar e a sair de casa por volta das 10.30h.
- E no verão?
Sorriu com o ar condescendente de quem vai responder a uma pergunta parva:
- É como em todo o lado.
- Sim. Claro que sim.

Tinha razão. A cidade estava a acordar da hibernação matinal.
Aos poucos e poucos o movimento ia nascendo com o tilintar das chaves das portas das casas que se iam abrindo.
Os vidros dos carros eram raspados e as lojas abriam-se.
A Casa do Natal e o seu posto de correio, de aspecto rústico e atulhado de Pais Natal, duendes e afins ofereciam agora um refugio onde eu podia aquecer as mãos e finalmente conseguir retomar a circulação delas.




Drobak estava vista.
Uma descontraída, muito pouco apressada e colorida pérola plantada nas margens de um fiorde, mesmo às porta da capital norueguesa.

Depois da hibernação matinal, de assistir ao seu acordar, estava na hora de voltar ao “quentinho” de Oslo.


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