Tromso, ilha de Sommaroy, Noruega - a ilha do Verão no Inverno

É o branco. É a única forma de branco que me atrai. Que me fascina. 
Tinha experimentado o mágico esplendor do poder da neve na montanha, algures em 1997.
Nesse ano, na Serra da Estrela, num fim de semana perdido numa semana esquecida num dos meses inicias desse ano fiz uma caminhada. A primeira caminha numa montanha com um longo vestido de neve.
Essa caminhada fi-la em silêncio. Pisava as pegadas de quem seguia à minha frente. É mais fácil caminhar. É o equivalente de andar na roda no ciclismo. O esforço maior é sempre de quem vai à frente.

Mas não era só isso por isso que o fazia. Não queria macular, pisar aquele branco puro. Ouvia a minha respiração, o estalar da neve sob o peso dos meu companheiros e as suas respirações. As conversas tinham cessado ao fim de um par de horas. 
Ouvia o céu azul a falar comigo, o ar límpido e transparente a entrar pelos meu pulmões, a minha cabeça a esvaziar-se à medida que ia subindo.

Numa paragem,depois comer um par de sandes e beber um ice tea gelado, num buraco feito na neve à medida da lata, afastei-me dos meus colegas. 
Escondido por uma saliência maior de neve, deite-me nela. Senti a diferença de temperatura a percorrer as costas e as pernas, ri de tal maneira que os meus lábio que se encontraram atrás do meu pescoço. Pela primeira vez abri e fechei os braços várias vezes na neve e fiz um falcão. O primeiro de muitos em várias montanhas, em vários países, a várias altitudes. 
Mais tarde soube que lhe chamavam anjinhos, mas nunca deixei de lhes chamar falcões.

Nesse dia, na Serra da Estrela, num fim de semana perdido numa semana esquecida num dos meses inicias de 1997, a montanha, a neve pela sua pureza e pela paz que induz e entraram em mim para nunca mais saírem.


Levantei a cara para o alto e os flocos de neve caiam nela docemente. Quase que os sentia cair um a um. A suavidade deles sempre me espantou. Não fosse a sua temperatura e diria que se tratava de algodão. Faço sempre questão de o fazer. Sinto-me sempre um privilegiado.

Augusto tinha sugerido alugar um carro, fazer o perímetro de Tromso e ir ate a Ilha de Sommaroy, aproximadamente a quarenta quilómetros oeste de Tromso.
Sommaroy, a ilha do Verão, estava para Tromso como Drobak para Oslo. Ambas são destinos veranis dos noruegueses e de quem visitava estas duas principais cidades.
Uma escapadela para o country side norueguês, uma fuga da rotina (pouco) urbana destas duas cidades.
Foi o que fizemos debaixo de um forte vento que fazia levantar a neve da estrada, tornando-a difícil de visualizar, ao mesmo tempo que desfocava e turvava permanente tudo o que se passava à frente do carro.

Ao longo do caminho com bermas das estradas muradas por alguns centímetros de neve, as casas iam rareando.
As estradas estavam desertas. Tal como as casas, os carros eram escassos. Um ou outro cruzava-se connosco. Esta parte do norte da Noruega parecia inabitada.
A sensação de isolamento aumentava-lhe o encanto e a sua beleza.

Não havendo muitas estradas por entre as ilhas, frequentemente para atravessar os estreitos do Mar da Noruega por entre as ilhas a única solução viável é utilizar o ferry. Foi o que teve de ser feito em Lyngseidet.
Estávamos na companhia do fiorde Lyngen. Um extenso fiorde com mais de oitenta quilómetros de extensão com escarpas imponentes e verticais.

As casas isoladas que se perfilavam ao longo da costa tinham caminhos e trilhos abertos à custa de pás ou de pequenos limpa-neves do tamanho de um pequeno tractor.
Algumas estavam erigidas sob estacas pouco acima do manto de neve.




De novo aquela visão única de uma paisagem imponente em que a cor é tão amortecida que podia ser dispensada, sem que haja por isso um menor deslumbramento. O preto e branco mais uma vez eram imponentes e dominadores.

Tudo estava mergulhado naquele pacífico manto branco. A natureza estava adormecida. Apenas o vento se fazia ouvir. Fazia questão de marcar o seu vasto território. Era o único animal selvagem que
por ali vagueva.
O céu de um cinzento escuro carregado fundia-se no horizonte da paisagem. Esta parecia ser interminável.
Eram paisagens de fantasia. Irreal. A sensação única de se flutuar em vez de andar, a visão de um outro planeta que não o nosso, ou estranhos em terra estranha.


A ilha de Sommaroy está ligada à ilha Kvaloya pela elegante ponte Sommaroy que curva suavemente para a direita. 
Uma ponte de sentido único regulada por semáforos conhecidos por deixarem de funcionarem em dias de forte ventos. O que não era o caso neste dia.




Desce-se suavemente até à aldeia de Sommaroy.
Barcos em terra e poucos pescadores no exterior. Num café de ambiente escurecido nós, dois casais de noruegueses e um grupo de homens ruidosos particularmente bem equipados davam-lhe vida. Vestidos de coletes reflectores e fatos macaco impermeáveis de vermelho pareciam ser da guarda costeira norueguesa.

Através de uma grande portada para o exterior, via-se um escorrega cheio de neve e dois baloiços abandonados.
Uma casa de cor bordeaux dava uma mortiça pincelada de cor ao céu cinzento escuro como a grafite de um lápis mal afiado da quarta classe.
Ao fundo uma estreita faixa de mar parcialmente congelada empurrava os nossos olhos para o horizonte. Nele, algumas casas com fachadas de cor amarela e bordeaux plantadas nas encostas do fiorde eram derrotadas pela distância e pelo céu profundamente cinzento.




Não sei como será a Ilha do Verão no verão, mas no Inverno é misteriosa, é sedutora. Uma sereia que encanta quem ouve o seu cantos e prende quem espreita os seus olhos cinzentos.

As cores vivas e fortes das casas, que também estavam bem presentes em Tromso e Drobak, que tinha visto ao longo deste percurso, apesar de diminuídas pelo omnipresente branco, destinava-se precisamente a quebrar esse poderio.
Ponto focais onde os olhos de alguma maneira podiam descansar, no esforço de permanente estarem fixados numa paisagem imponente mas indistinta entre horizonte e o solo.


O vento preocupava-nos. Soprava mais forte e a visibilidade tinha piorado bastante.
Augusto estava tenso em conduzir com o tempo daquela maneira. A velocidade lenta e com o carro instável a progressão era difícil.
Do nada e de repente elas surgem à nossa frente.
Primeiro como vultos sombreados difusos e depois concretizados poucos metros à nossa frente.

Devido ao cuidado de Augusto na condução tivemos a tremenda sorte de nos cruzar com renas sem que nada acontecesse a nós e a elas. Não é rara a colisão destes animais com os carros.
Impávidas, serenas, pouco incomodadas com o vento, atravessavam a estrada indiferentes ao carro e ao tempo.
Vagarosamente entraram na neve profunda e juntaram-se à restante manada que já lá estava.




Estava fascinado.
Torcia-me todo fora da janela e levava com a neve no rosto com toda a força. Tinha os olhos a lacrimejar por causa do forte vento frio.
Era a primeira vez que as via ao vivo. Ainda por cima tão próximo de mim. Uma espessa pelagem mista de castanhos claros com escuros. Era belos, belos animais.
Percebia-se que eram poderosos, jovens. Hastes ainda não muito desenvolvidas e caminhavam na neve soprada pelo vento facilmente. Respiravam força e vigor.

Com as patas e o focinho afastavam e raspavam a neve das rochas para chegar à erva e líquenes que se escondiam debaixo dela, presas às rochas e ao troncos das árvores. Cortavam cerce o que já estava cerce.
Como conseguiam elas alimentar-se e aguentarem-se durante os meses de Inverno com tão parcos recursos?




O vento e a neve deformavam e esborratavam os contornos da paisagem.
Percebia-se os contornos e as texturas mas estes não se perdiam no excesso dos detalhes nem em misturas exuberantes de cores tornadas quase inúteis e desnecessárias pelo árctico Inverno do Grande Norte.

As árvores, os arbustos estavam suspensas no tempo. Despidas, anorécticas mas resistentes. Os segundos quase sufocavam, parcialmente debaixo daquele espesso manto claustrofóbico.
De novo imaginava uma folha em branco onde a paisagem era desenhada a grafite em traços rápidos, mas precisos e soltos.
Era a melhor maneira possível de guardar e gravar uma memória no meu cérebro. A preto e branco.




Ao sair de Sommaroy, uma avalanche tinha varrido uma equipa de esquiadores e a estrada estava cortada para os acidentados poderem ser evacuados. Um helicóptero voava sobre a área afectada à procura de sobreviventes.
Fomos parados por um senhor que estava avisar quem queria passar do que tinha acontecido. Disse-nos que tínhamos que voltar por onde passado. Antes disso com ar esperançado perguntou se sabíamos esquiar e se tínhamos equipamento para tal. Com pena, respondemos que nem uma coisa nem outra.

Voltar para trás era dar uma volta bastante maior que o previsto mas era a única maneira expedita de sair dali.
O vento tinha aumentado e a neve no ar também. Falhámos o desvio o que senhor nos tinha dado para não regressarmos de novo a Sommaroy. Depois lá o encontrámos.

Em Tromso não havia vento nem neve a cair, mas o céu era uma extensa mortalha cor de chumbo.


Logo à noite… Nem queria pensar nisso.


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