Tromso, Noruega - mau pressentimento

Há os caçadores de tesouros, os caçadores de tempestades, de prémios e até de fantasmas.
Esta noite ia estar com os caçadores de auroras.
Eles iriam ser necessários. As Luzes do Norte são muito ténues. A poluição luminosa de uma pequena cidade pode inviabilizar a sua visualização. Era necessário fugir dela, sair da influência citadina para as encontrar. 


As auroras estão carregadas de mitologia e lendas.
Fantasmas dançarinos, espíritos presos no limbo entre o Céu e a Terra, regresso dos Ancestrais ou ainda as armaduras brilhantes das Valquíria, as cavaleiras armadas que montavam cavalos alados.

Pessoalmente gosto do conceito dos fantasmas bailarinos. É uma imagem etérea, espectral a condizer com a difusa e quase transparente luz das auroras.
Mas era a imensa beleza, a extrema elegância das suas formas e as suas misteriosas cores que enchiam o meu imaginário.

Em todas as direcções o céu estava cinzento como um discurso de um político em dia de eleições.
As previsões meteorológicas mantinham estas condições para os próximos dias. Pior do que isso, é que essa mesma previsão também se mantinha para as próximas noites.
Mau demais para quem estava em Tromso para ver auroras.





A primeira noite

No dia anterior, no posto de Turismo de Tromso - visit Tromso - informaram que o ponto de encontro da Arctic Guide Service, os caçadores de auroras escolhidos, era no Scandic Ishavhotel por volta das 18.30h.

Era indispensável roupas quentes por camadas, aconselhavam pelo menos quatro, luvas quentes dignas desse nome, um gorro, meias quentes e umas botas à prova de frio.
Alguma coisa para comer apesar de a organização oferecer chá, cacau quente e bolachas.

Apesar destas caçadas às auroras serem conhecidas pelo elevado número de pessoas que vão nelas, felizmente não era este o caso. O autocarro estava com cerca de um terço da sua capacidade ocupada.
Assentos em veludo bem cuidado, cintos de segurança e luzes fracas no seu interior.
Olof apresentou-se. Estava nas escadas da porta de saída do autocarro com os braços apoiados nos corrimões que as ladeava.

Era sueco, estava a trabalhar como guia na Noruega há dois anos. Tinha deixado a Suécia porque para o mesmo trabalho, na Noruega ganhava-se mais.
O condutor chamava-se Stensson. Era profissional há vários anos. Olof fez questão de sublinhar a importância dos condutores profissionais e da segurança da sua condução.
Estão habituados a conduzir em condições meteorológicas adversas, pisos gelados e escorregadios e conhecem perfeitamente os trajectos para os diversos locais de observação das auroras.

Nesta altura ainda não sabia, mas na noite seguinte, o Augusto e eu iríamos completamente pulverizar estes sábios conselhos.

Já em movimento, o guia continuou a passar informação. Para fotografar auroras, era necessário uma máquina fotográfica reflex, um bom tripé e guardar as pilhas da máquina junto ao corpo.
O frio descarrega em menos de nada, por muito que estejam carregadas, a carga das baterias. O calor do corpo ajuda a manter a energia delas por um tempo consideravelmente maior.

Relativamente às câmaras dos telemóveis era para esquecer. As bridge eram duvidosas. Dependiam dos euros gastos nelas.
Quer para uns quer para as outras, os sensores são pequenos e pouco sensíveis às cores das auroras. Desânimo imediato em alguns assentos e a ouvir-se as máquinas a rolarem pelas mãos.
Eu estava bem servido de máquina, ao tripé, zero. Quando viajo recuso-me a carregar tripés.
Tal não me preocupava minimamente, mais do que fotografar auroras, queria mesmo era vê-las.

Em Tromso nevava e o céu estava atrozmente fechado a sete chaves de cinzento. Estava com mau pressentimento.
Com uma hora a rolar o céu abriu e as estrelas abriram. Por causa da geografia de Tromso, o tempo não costuma ser dos melhores. É preciso sair da influência dos fiordes para os céus se descobrirem.

Olof avisou que começássemos a olhar pela janela fora. Se víssemos as auroras, o autocarro faria a paragem obrigatória.
Nada. Nem uma desvanecida pincelada de qualquer cor perturbava o negro transparente do céu.
O mau pressentimento estava cada vez mais forte.

Mais alguns quilómetros e o autocarro parou. Estávamos no vazio. Sem carros, sem casas, sem luzes citadinas. Apenas árvores, muita neve e um frio de estalar. Mas estalar a sério. -20ºC  para baixo.
O grupo caminhou uns minutos num trilho rasgado na neve e uma clareira apareceu com dois lavvu samis. Uma grande e outro mais pequeno.
Um lavvu ou teepee é uma tenda muito simples do habitantes da região da lapónia (norte da Noruega, Finlândia e Suécia), de forma cónica, rigidificada com longos barrotes de madeira, coberta actualmente com lonas, que se caracteriza pela facilidade com que é desmontada e colocada em novos lugares,

Era no lavvu grande que se faria a espera pelas míticas Luzes do Norte.
O pequeno era para organização onde aqueceram o cacau quente e chá e trouxeram as tais bolachinhas.

Nele, estava uma enorme fogueira acesa onde pouco depois apareceriam as primeiras botas a secar e os primeiros pares pés a aquecerem.




Dentro do lavvu, a diferença de temperatura do lado do corpo que estava virado para a fogueira e o lado oposto era de tal maneira grande que as pessoas iam virando de uma lado lado para o outro, como alguém que vai rodando um marshmallow para aquecer homogeneamente.

Cá fora outra fogueira estava acesa com cerca de metade do grupo ao seu redor com os pés apontados para fogueira, enquanto olhavam para o céu esfomeados por um borrão de cor que manchasse o breu do céu.
Ao olhar aquele conjunto de almas geladas, algumas iluminadas pela forte luz amarelada laranja das espevitadas chamas da fogueira e outras na penumbra, apenas com os seus contornos a destacarem-se na, trouxe à minha memória a famosíssima pintura Ronda Nocturna do holandês Rembrandt de 1642.

No centro desta enorme pintura, bem destacadas, as principais figuras estão iluminadas por um foco de luz e as restantes estão escurecidas apenas percebendo-se os contornos e os seus vultos. Aquilo que se chama um chiaroescuro. Um forte contraste claro-escuro.

Exactamente o que tinha à frente. Um tema, não tão glorioso como o de Rembrandt, mas um chiaroscuro barroco do sec XVII digitalizado numa fotografia do sec XXI.




O tempo passava. O frio fazia-se sentir já nos ossos. Dentro e fora do lavvu.
Quando o corpo está parado e não gera calor, por muito bem que estejamos equipados, não serve de nada.
Se não há calor, não há calor para manter. A perda de calor é inevitável e muito difícil de suportar.

A impaciência já grassava e poucas pessoas estavam na disposição para suportar o intenso desconforto do frio glacial durante muito mais tempo, à espera de algo que insistia não queria aparecer.
O autocarro parecia cada vez mais acolhedor. Melhor que qualquer fogueira.
Olof pressentiu isso e os bancos foram ocupados em silêncio.

A primeira noite tinha sido uma desilusão. Tinha ainda uma segunda noite e portanto as possibilidades mantinham-se intactas. Mas sentia em mim o peso silencioso do mau pressentimento que fazia baixar as expectativas para essa noite.


A segunda noite

Tudo o que envolve coroas norueguesas é exorbitante. A noite anterior com a Artic Guide Service tina custado cerca de 120 € (950 NOK).
Como eu e o Augusto tínhamos carro alugado, abdicámos directamente dos serviços deles, para usufruir indirectamente. Ou seja, não íamos com eles, mas sim atrás deles. Um pensamento muito tuga.

Comparativamente à noite anterior, o tempo tinha piorado.
O meu pressentimento mantinha-se e tinha aumentado.

À hora da noite anterior e depois percebermos qual era o autocarro e arrancámos atrás.
E rapidamente, literalmente rapidamente, percebemos que o autocarro estava com pressa. Mesmo com pressa.
A tal ponto que em meia dúzia de quilómetros perdemo-lo de vista. Não havia sinais dele.
Não sabíamos qual a segurança com que conduzia, mas percebemos que efectivamente conhecia o que ia surgir por trás de cada curva e que o seu grau de loucura era tão elevado quanto o conhecimento que obviamente tinha da estrada.

Passámos o lugar da noite anterior. E nada. Ninguém estava lá. Augusto começou a andar mais depressa, na tentativa de ganhar terreno. Sem sucesso. Quando as coisas corriam bem apenas conseguíamos ver as luzes traseiras do autocarro desembestado.
Quando surgia uma bifurcação seguíamos a famosa regra de quem anda perdido: na dúvida, vira para a direita.

Cada vez que vislumbrávamos as luzes dele, renascia a esperança de o apanharmos. Sempre vã.
Nevava abundantemente e a visibilidade era muito baixa. O Augusto apertava com o carro. De vez em quando derrapava ligeiramente.
A luz dos faróis batia nos flocos de neve e parecia que atravessávamos uma nuvem de pirilampos brancos. A noite negra era lesta. Fechava-se imediatamente atrás de nós reclamando para si as feridas que as luzes lhe tinham rasgado.

Rápidos quilómetros atrás de quilómetros sem paragens. O céu não abria, a lua não se mostrava e a cortina branca mantinha-se cerrada e o autocarro estava imparável.
O que estávamos a fazer era de loucos. Desejava que os pitões dos pneus estivessem em bom estado e se aguentassem firmes no alcatrão forrado de branco. Se a coisa corresse mal, corria realmente mal.

Finalmente o autocarro parou e poucos saíram dele.

Não fazia sentido aquela paragem. Não havia visibilidade. O horizonte estava fechado.
Fizemos mais cem metros para a frente do autocarro para perceber o porquê da paragem.
Iluminado pelos faróis do carro, o motivo surgiu à nossa frente. Estávamos na fronteira com a Finlândia.

Numa dezena de metros cruzámos a fronteira. Pronto, estávamos na Finlândia.
Demos uns pulinhos, yehhhh, abracinhos e regressámos rapidamente para a Noruega.
Isto era o que de melhor aquela noite louca e cheia de adrenalina nos iria trazer.




Um jeep espaçoso com seis pessoas lá dentro tinha estacionado ao lado do nosso carro.
Um deles era brasileiro. Vinha de São Paulo e chamava-se Josué.
A guia era uma simpática finlandesa. Arrasava com o estereótipo e o mito da mulher nórdica. Era baixa, cabelo escuro que se adivinhava por baixo do capuz que lhe protegia a cabeça e olhos castanhos.

Ela falou connosco. Disse que o seu grupo no dia anterior tinha apanhado uma sessão de auroras muito bonitas e prolongadas.
Ficámos em silêncio durante alguns segundos a digerir aquela afirmação. Não tínhamos visto nada.
Tal como o estereótipo nórdico, ela arrasou com as nossas esperanças. Profeticamente disse:
- Esta noite e na próxima, ninguém nesta zona vai ver nada. O tempo desta maneira e com as nuvens tão baixas, elas tapam completamente as auroras.

A guia finlandesa disse que a melhor altura para as ver era entre Setembro e Novembro.
Deu-nos o seu cartão de visita com os seus contactos.
Para nós, a melhor altura só podia ser Março. Hoje.

A cheirar o nosso desânimo e como um cão de fila, o brasileiro, eufórico, aproximou-se de nós e pôs-se a mostrar as fotografias que tinha tirado. Eram dezenas. Elegantes cortinas onduladas de verde, vermelho e amarelo.
Ao longo do tempo que as tinham observado, as auroras tinham mudado várias vezes de cor e de apresentação. Um prodígio de cor e de formas.
Tinha a certeza que tinha estado no deserto e falhado o desejado poço de água.


Regressámos.
À volta ainda parámos num sítio onde havia vários carros parados e algumas pessoas encarquilhadas sobre si próprias e mãos nos bolsos, a olhar em frente. Alguns tripés com máquinas fotográficas estavam montados. Uma delas tinha um gorro por cima dela.
Era um miradouro espectacular com uma vista que se prolongava até ao horizonte.
A neve já tinha parado, as nuvens começavam a dar tréguas à noite.
Aguentámos algum tempo cá fora. A temperatura estava baixíssima.
Dentro do carro sem o ar condicionado ligado, em poucos minutos a nossa respiração congelava no interior dos vidros. Sentia-se a sua aspereza e raspava-se com a pontas dos dedos.

Resignados retomámos a viagem de regresso, bem mais calmamente.
Cruzamo-nos com uma raposa das neves de olhos a refulgir com o impacto das luzes do carro.
Já em Tromso, uma paragem estratégica para beber um copo onde uma fauna selvagem pulava e ululava, como se não houvesse auroras amanhã, ao som de um qualquer tipo de metal.

Quando me deitei, à boa maneira dos Monty Python, tentei ver o bright side of life destas duas noites de mau pressentimento concretizado.
Voltar ao Grande Norte, ter o prazer de rever os fiordes nevados, paisagens a preto e branco e sentir aquele aconchego único, a paz branca, de uma paisagem nevada consegue proporcionar.


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