Turmi, Etiópia - Ukuli Bullah I

Creio que é Paul Theroux que tem uma passagem no seu livro, a Arte da Viagem, que define o que uma viagem deve ser, deve representar e aquilo que será o seu objectivo último – "Encontrar aquilo que não se procura”.

Quanto maior for o choque cultural, quanto maior for a diferença de hábitos e costumes do país que visito e o meu país, melhor. Mais marcante e inesquecível será a viagem que empreendi.
Com um pouco de sorte sai o jackpot, o prémio supremo.

É quando o choque cultural que o viajante procura, busca e deseja, o ultrapassa. Vai para além do que é capaz de perceber.
É quando tem que fazer o esforço máximo de tirar o chapéu da sua cultura, para colocar um chapéu que lhe é estranho para conseguir aceitar, sem julgar, aquilo que frontalmente colide com os seus hábitos.
É quando se encontra o que não se procurou. É o pote de ouro no fim do arco-íris.


Na poeirenta aldeia de Turmi, bem incrustada no Vale do Omo, sul da Etiópia, vive a maior tribo deste vale, os Hamer. 
Como quase todas as tribos do Omo, os Hamer têm mantido todas as suas tradições e culturas praticamente intactas ao longos dos séculos.
Foi com eles que encontrei o meu pote de ouro no fim do arco-íris . 
E também com eles, tive que tirar o meu chapéu ocidental e vestir o do etíope. Este estava bem apertado. Tive que o forçar bastante.


No dia anterior, Chuchu, o meu guia etíope e tradutor, tinha dito que com um pouco de sorte seria possível assistir ao Bull Jumping.
Primeiro era necessário descobrir qual a aldeia onde iria acontecer, mas que tudo indicava que seria perto de Turmi.
Estas aldeias estão em locais remotos, pouco acessíveis. Era necessário encontrar guias locais para nos levar até lá. Mas era quase certo que tal seria possível.
Estarreci. É uma daquelas coisas que sabemos que existe, mas que não pensamos sequer que é algo que possa ser assistido.

Estar presente no Bull Jumping é recuar no tempo vários séculos. É uma cerimónia complexa primitiva, ancestral e sangrenta, praticamente inalterada ao longo dos tempos que se tornam longínquos.
Dura cinco dias. Dias de cantos, danças e longos e faustosos festins.
As famílias vêm de todos os lados. Algumas percorrem vários dias de caminhada. É uma mega reunião à escala Hamer.
Já em festa, fazem os preparativos para os cinco dias que se seguem. O terceiro dia, é o dia D. É quando o ritual acontece. Na verdade é quando tudo acontece.
Os restantes dois dias são um prolongamento mais intenso e vivido dos dois primeiros.
Eu ia estar precisamente no dia do meio. O terceiro. O mítico terceiro.


Era o típico ruído de gravilha a ser pisada por pneus que eram conduzidos por quem pensava que era um finlandês voador.
O jipe parou com uma derrapagem despropositada. Dentro dele, das janelas abertas, ouvia-se reggae a berrar aos sete ventos e uma grossa nuvem de pó amarelo no interior do carro depositava-se nos bancos podendo-se fazer desenhos com a camada que formava.

James saiu com dificuldade do jipe. Teve que apoiar-se fortemente na porta e quando a ponta do pé esquerdo assentou no chão, o 4x4 deu um solavanco como um suspiro de alívio.
Era um avantajado e abrutalhado etíope, cheio de rastas, gorro jamaicano a condizer, grossos anéis nos dedos, charro aromático na boca, tipo - “Eu sou bom, sou cool, as gajas não me resistem e os gajos gostavam de ser como eu” - que se juntou aos outros dois condutores que já lá estavam.

Os três jipes iriam levar cerca de doze pessoas para uma aldeia perdida no meio dos montes para uma cerimónia que tinha visto apenas um par de vezes na televisão. O “Bull Jumping”, a cerimónia Ukuli Bullah.
Este ritual da tribo Hamer celebra a passagem de menino para homem, caçador e guerreiro.
O momento em que pode escolher uma mulher para casar.


Ao sair do jipe tive que me situar, perceber o que se passava à minha volta.
Estava imerso num frenético ambiente de sons e cores que confundia e assoberbava os meus sentidos. Cornetas de som agudo, chocalhos imparáveis, gritos, cânticos e pulos.
Para onde quer que olhasse, algo acontecia.

No ar ouvia-se o silvar dos chicotes feitos de finos ramos de árvores. Estes estavam cuidadosamente desfolhados, espinhos e irregularidades suavizadas pelos maza.

Os maza são jovens que já fizeram o ritual de iniciação do Bull Jumping.
Estão solteiros. Ou porque ainda não lhes arranjaram casamento, ou porque o dote para a sua noiva ainda não está completo.
Andam de bullah em bullah sendo pagos pela família do ukuli, o jovem que vai fazer o ritual de passagem para adulto.
Estão adornados com penas de aves na cabeça, colares e braceletes feitas bugigangas e contas.







As raparigas tinham os seus rostos cobertos de uma pasta ocre feito de argila vermelha e manteiga, os seus cabelos estavam cuidadosamente entrelaçados e cobertos da mesma pasta que lhes cobria o rosto.
As saias são feitas de pele de cabra ou de um tradicional e colorido pano.
Têm pulseiras de metal nos seus braços e chocalhos nos pés e joelhos.
Os seus pés estavam descalços ou apenas protegidos por umas ligeiríssimas e quase inexistentes sandálias.

Pulavam em uníssono, batendo fortemente os calcanhares no chão, gritando e soprando incessantemente as cornetas.
Os gritos repetitivos, os pulos sincronizados, a formação em grupo, os chocalhos, as cornetas, punha-as em transe. Os seus olhos estavam muito abertos, fixos no nada, esvaziados.




Da formação sai uma jovem, aproximava-se do maza com o chicote na mão, e pula incessantemente à sua frente, soprando sempre a estridente corneta com o braço direito levantado e o esquerdo em baixo.
Se o rapaz a ignorasse, ela perseguia-o até obter o que desejava: uma vergastada nas costas ou na sua cintura.

Os maza andavam de um lado para o outro. Eram elas que os escolhiam. Se por acaso fosse uma vergastada piedosa, sem convicção, ou propositadamente protegida pela roupa que lhes cobre a anca, insistiam. Tiravam o chicote das mãos do carrasco, gritavam, abanavam-lhe os ombros e voltavam a dar-lhe o chicote, de novo aos gritos, aos pulos, a corneta estridente a soar, mostrando o lado onde queria que fossem chicoteadas.
O assobiar do chicote tornava-se então impiedoso e a pele cede sobre o seu impacto. E então sim, elas ficavam satisfeitas.

Nem um esgar de dor, nenhuma contracção involuntária do corpo, ou um ligeiro pestanejar de olhos. Como era possível suportar aquela dor afiada no corpo daquela maneira?
Como conseguiam aguentar e desejar ainda mais, quando o castigo soava já na zona castigada??
Dor sobre dor. Rasgo sobre rasgo. Cada novo rasgo surgia por cima e ao lado dos outros, como os sulcos sucessivos de um arado que sulca a terra.




Demonstram a sua solidariedade ao jovem Ukuli e mostram que a dor não as faz fraquejar, que os homens não são capazes de as derrubar e que estes obedecem aos seus desejos quando desferem o golpe brutal.
Para elas, a ostentação desses ferimentos são motivo de orgulho, da mesma maneira que um combatente exibe o seu casaco cheio de medalhas pela sua bravura.

As mais novas não participavam, apesar de ostentarem os mesmo adornos. Andavam por ali. Atentas. A ouvir, a ver, a aprender, talvez a pensarem ansiosamente quando chegará a sua vez.
Por vezes tentavam dirigir-se a eles para serem chicoteadas. Eram recusadas e afastadas.


São horas inteiras, a fio neste frenesim insano.
O incessante silvar do ar que culmina numa pele rasgada, nas cornetas que não desconhecem o que é o silêncio, os chocalhos que não cessam de bater uns nos outros e a garganta que não se cansa de gritar.
Ocasionalmente elas recolhem a um recinto onde se hidratam com café servido em meias cabaças, aquecido em taças e potes de barro assentes em fogueiras.
Hidratam-se e recuperam.

Descansam sentadas à sombra das árvores ou num recinto forrado com folhas onde se encontram os familiares e membro dos Hamer que estão presentes neste ritual. Falam com eles, amamentam os filhos, conversam entre si.
As feridas são olímpicamente ignoradas.










Depois, como um mendigo sedento que volta ao poço vezes sem conta, elas regressam à procura do chicote que as magoa, mas que as enche de orgulho.
São avaliadas pelos homens, pelas mulheres mais velhas, também elas ostentam grossas cicatrizes de antigas cerimónias.

Se as feridas são extensas, o cansaço é extremo e o discernimento está toldado então não as deixam voltar para próximo dos rapazes.
Cambaleantes, tropeçam nos seus pés e acabam por ceder. Outras, imparáveis, vão mesmo à procura de mais.




Os chicotes hesitam-se em fazer-se ouvir. Estão também cansados, alguns partidos. Uma ou outra vez ainda se fazem ouvir, a fazerem a vontade a quem os deseja tanto.
E quando os silvos cessam de vez, o frenesim delas continua. 
Pulos, chocalhos, cornetas e cânticos e pulos, chocalhos, cornetas e cânticos.



Comentários

  1. Tenho andado desaparecida mas tenho que voltar aqui com calma...e perder-me nestes textos e imagens.
    Libertar a mente do trabalho e do cansaço e apreciar a beleza e a diversidade cultural.
    E ficar com uma inveja medonha:)))))))))

    Bom fds

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    1. Olá Andorinha. Obrigado :)
      É sempre bom ver-te por cá :) Um beijinho bem grande.

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