Turmi, Etiópia - um estranho numa terra estranha I

Turmi é Terra dos Hamer, uma das tribos mais icónicas do Vale do Omo, cujo modo de vida se mantém praticamente inalterada ao longo dos séculos.
Ia ter a oportunidade de passar dois dias com uma tribo Hamer. É sempre a melhor parte de uma viagem. Estar com as comunidades locais, vivenciar em primeira mão os seus estilos de vida.

Levei comigo umas duas dezenas de sabonetes de pequenos sabonetes para "comprar" algumas fotografias.
Como a estadia com esta tribo era paga, o acesso ao seu modo de vida, a interacção e participação nos seus costumes e hábitos não tinha restrições, desde que a sua cultura e a conduta social fosse respeitada.

Mas relativamente a membros de outras tribos acontecia exactamente o contrário. Tudo era pago.
Para não se pagar em dinheiro as fotografias e os contactos sociais, pagava em sabonetes. Algo que lhes era particularmente útil e de difícil acesso. Todos lucravam.

Ser vegetariano no meio de uma tribo no Vale do Omo é algo complicado. 
Para evitar "dissabores" com as refeições, abasteci-me de fruta fresca, fruta em calda, pão, sumos e frutos secos.

A pequena van branca percorreu alguns quilómetros por estradas ermas. 
Ao longo desses quilómetros alguns membros das diversas tribos do Vale do Omo iam aparecendo e mostravam a incrível variedade e colorido das tribos que nele habitam. 
Chuchu ia desvendando os seus nomes: Hamer, Morsi, Kara, Suri, ...


Tal e qual como tinha pensado.
Putos aos pulos, adultos parados a ver-nos chegar e os mais jovens tinham as mãos a tocarem na boca recheada de curiosidade.
O grande oleado azul estava a ser retirado por Chuchu que tinha subido ao tejadilhos da van.
As mochilas eram atiradas cá para baixo. Não era só as minhas mãos que estavam preparadas para apanhá-las.
Um puto aos saltos gritava ao Chuchu que ia descarregando as mochilas que lhe desse uma. Recebi as duas mochilas e dei a mais pequena a Kuli, o tal puto que estava ao meu lado e ele deu-me a mão enquanto ia olhando para trás empertigado e com orgulho inchado de um bravo guerreiro.

Atirámos as mochilas e tendas para o espaço que nos foi atribuído e depois fomos apresentados ao chefe da aldeia. Um a um cumprimentamo-lo.
Mão direita estendida e mão esquerda a segurar o cotovelo direito numa clara indicação que não iríamos usar a esquerda. Quer seja para cumprimentar, dar ou receber algo é sempre este preceito que tem que ser cumprido. A mão esquerda tal como para os muçulmanos e vários países asiáticos é uma mão impura.

O chefe da aldeia era um ancião franzino, careca e com uma barba rala, coberto com uma túnica e vergado ao peso de muitas largas dezenas de anos acumulados sobre os seus ombros apoiado sobre um ramo de árvore que lhe servia de bengala.




Estava sentado num banquinho feito de madeira, o borkoto, que só os homens utilizam. Muito típico dos Hamer, tem uma muito curiosa forma. Este é usado em duas situações bem diferentes.

Uma era a óbvia e a que estava ali à minha frente. Um expedito banco para ser usado a qualquer altura e a qualquer hora. O equivalente aos nossos pequenos bancos de pano desdobráveis que tanta gente usa nos picnics.
A outra, bem menos óbvia, era servir de almofada.
Os homens hamer têm cortes de cabelo bastante elaborados e complexos, sendo bastante vaidosos no que respeita a esse corte, quando se deitam para dormir apoiam o pescoço nesta almofada poupando assim o cabelo, porque fica fora desta "almofada".

Experimentei este banquinho nas suas duas opções e é extremamente desconfortável. Sentado, os joelhos quase que batem no queixo, mas principalmente usado como almofada. Qualquer ocidental acabaria com um tremendo torcicolo no dia seguinte.

Os homens andam sempre com este banco para todo o lado. A quantidade destes banquinhos que há à nossa volta é impressionante.
Banco na mão, param, banco no chão, descansam ou dão dois dedos de conversa, levantam-se, e de novo banco na mão até outra paragem que pode ser de apenas meia dúzia de metros à frente.




A luz começou a declinar no horizonte e era altura de começar as montar as tendas.
duas jovens Hamer insistentemente queriam que as fotografasse:

- Olha, olha, nós, nós
E as duas ficavam lado a lado uma da outra. Ignorei- as. A minha preocupação era montar a tenda, ao mesmo tempo que ajudava algumas pessoas que integravam o grupo que ia estar acampado nos terrenos mesmo ao lado do cercado onde as cabras se juntavam. Queria assistir ao pôr do sol.
Estava de costas para elas e ia sentindo toque consecutivos nas minhas costas. Sempre que voltava para trás lá estavam elas ao lado uma da outra.
- Amanhã tiro. Agora é para montar tendas.
Não desarmaram. Agora uma agarrava firmemente a minha mão e a outra começava a vasculhar dentro de uma das minhas mochilas. Aquilo era algo que definitivamente eu não queria.
- Agora, agora. Disse a que tinha um enfeite na cabeça. - Temos que ir embora para a tribo.
Eu agora estava de pé com uma espia na mão. - Onde é a vossa tribo?
- Do outro lado. Amanhã não estamos cá.
Percebi a mensagem. Pertenciam a uma outra tribo, portanto estavam fora do acordo da minha tribo. As fotografias tinham que ser "pagas". No fundo o que elas queriam era mesmo os sabonetes.
Tirei-lhes uma fotografia rápida, ambas com olhos de frete e pose mil vezes repetida.
Dois sabonetes para cada uma. Um bom "preço" para elas que só pediam um.
Desapareceram rapidamente e acabei de montar a tenda.

O Sol beijava languidamente o horizonte.
Os homens direccionavam para o curral um grupo de cabras vindas das pastagens, com curtos e incisivos gritos. Em contraponto às vozes humanas ouvia os balidos da cabras irrequietas.
Um cão estava deitado próximo de uma cabana.
O telhado de colmo estava cinzento prateado, a erva estava verde e a terra com uma cor difícil de definir. Tudo coberto por um dramático e profundo céu cinzento azulado que emprestava cores irreais à cena que tinha à frente dos meus olhos.

Sentia profundamente aquela sensação interior, privilegiada e deliciosa que só as viagens nos trazem.
Ser um estranho numa terra estranha.








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