Turmi, Etiópia - Ukuli Bullah II

Chuchu tinha dito que as diversas tribos do Vale do Omo eram orgulhosas das suas tradições.
Viam os ocidentais como seres inferiores incapazes de suportar as provas a que submetiam os seus jovens, caçar como eles caçavam, pastar o gado, enfrentar animais selvagens, enfrentar inimigos e tribo rivais, saber onde encontrar água.

Não era a primeira vez que ouvia isto. E sempre concordei com esta opinião. 
Sem a tecnologia que nos suporta e agiganta, somos muito pequenos. Muito frágeis.
Sabia disto por experiência própria. 
No Delta do Okavang, Botswana, em 2009, um encontro (muito) próximo com um elefante, num safari a pé. iria provar precisamente esta fragilidade.
Nada como viajar por África para pôr as coisas na perspectiva correcta.


A luz diminuía, anunciando o fim da tarde. Os homens apareceram, os anciãos sentaram-se. Havia conversas descontraídas um pouco por todo o lado. As anciãs estavam dentro das cabanas ou andavam cá fora.
Dentro das cercas das casas, feitas de ramos entrelaçados de espinhosas acácias, as mulheres cozinhavam dentro de grande potes de barro.

Vindos dos pastos, homens começavam a aparecer acompanhados com vacas e bois, um pouco por todos os lados.
Os cerca de quinze bovinos começam a juntar-se e a serem alinhados paralelamente entre si.


As mulheres juntaram-se aos homens. Sempre aos pulos, com os pés a bater forte no chão, levantando pó a cada pulo dado, os chocalhos e as cornetas a voltavam a soar.
Elas desenhavam círculos à volta do gado estreitando e confinando-o a um espaço cada vez menor.
Os homens pegavam nos bovinos pelos cornos e tentavam colocá-los nos sítios onde queriam.
Era uma tarefa árdua.
Eles ofereciam resistência. Estavam assustados e nervosos com a quantidade de gente que estava à sua volta deles e do estridente ruído ensurdecedor das mulheres que os rodeavam.




Ak’oud, o Ukuli, estava nu, apenas duas tiras cruzavam os ombros e o seu peito.
A ausência de roupas representava o novo começo, a sua nova vida que estava à distância de conseguir caminhar por cima dos dorsos dos bois quatro vezes. Duas vezes para cada lado.
Ao olhá-lo pensei na quantidade de mulheres que tinham sido chicoteadas por ele.
Se ele caísse uma vez tinha a desculpa de ser atribuído ao movimento dos animais que constituíam as barreiras vivas pelas quais tinha de saltar.
Chuchu disse-me que se ele falhasse mesmo, a desgraça caia sobre ele e sobre a sua família. A pressão sobre ela era tremenda.

Antes, uma cerimónia de boa sorte.
Os Maza juntam-se em redor do Ukuli falando com ele. Dão-lhe esperança no passo que está prestes a dar. Desejam-lhe sucesso, que a sua vida vai ser boa. Uma vida feliz, abundante, muito gado e com uma boa noiva.




Tenso, Ak’oud com um penteado ritualizado e a destacar-se de todos os outros, concentrou-se.
Uma breve corrida e saltou com impulso para cima do primeiro boi. Correu sobre os dorsos dos restantes, meio desequilibrado. Caiu. Os homens amparam-no.
As restantes tentativas foram um sucesso. Foi congratulado por todos. As mulheres nunca tinham parado com o seu frenesim.
O Ukuli era agora um Maza. Um adulto, um homem e um guerreiro.










Para quem assistia a esta cerimónia, era o fim. Altura de caminhar de regresso aos jipes. 
Um grupo de americanos e espanhóis conversavam em voz alta.
Uns franceses caminhavam em silêncio, o meu grupo trocava impressões calmamente.

Eu caminhava em silêncio, com a cabeça em baixo como sempre faço quando algo me marca profundamente. 
Estava a interiorizar o que tinha acabado de assistir nas quase cinco horas que passei nesta cerimónia com os Hamer.
Tinha as vestes da cultura etíope sobre mim. Tinha retirado o meu chapéu ocidental.
Estava na Etiópia, tinha que ser como os etíopes. Em Roma sê romano, diz o provérbio.

Chuchu tinha dito que as diversas tribos do Vale do Omo eram orgulhosas das suas tradições.
Este ritual é milenar. Para um ocidental é uma cerimónia violenta, chocante e até doentia, mas era assim. Sempre foi assim.
Não podia julgar o que tinha visto e tinha conseguido não o fazê-lo.

Afinal, eu sabia em que consistia esta iniciação. Sabia ao que ia e nunca neguei assistir a ela.
Muito pelo contrário. Desejei-a entusiasticamente.
Considerei um privilégio e uma sorte inacreditável poder assistir a este ritual, a esta passagem, de menino a homem de uma tribo do qual o tempo se esqueceu.


A meio caminho de chegar aos jipes, o pôr-do-sol recortava as acácias. Os amarelos e os laranjas eram flamejantes.
Foi uma fotografia de impulso, não muito pensada. O meu espírito ainda estava com os Hamer. O seu frenesim, ainda ecoava pelos ares. Bem ou mal precisava de fotografar aquele quadro.

Aquelas acácias negras envoltas num céu incendiado que não as fazia arder acalmavam os meus cansados sentidos.
Pacificava-os.
Fotografá-las proporcionava um sofá onde podiam repousar, diminuir a velocidade a que eles tinham processado a realidade imparável das últimas horas.

É uma fotografia simples, tipicamente africana, com uma banda sonora primitiva, numa região primitiva mas complexa e num país que se revelava cada vez mais surpreendente a cada passo dado.




Tal como diria Paul Theroux - “Viajar é encontrar aquilo que não se procura”.
Bingo!




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