Turmi, Etiópia - um estranho numa terra estranha II

Duas das fixações da minha tenda estavam directamente presas a dois ramos de acácias das muitas que faziam o cercado das cabras.
Ia adormecer ao som dos balidos e dos guizos das cabras e acordar, de novo, com o seu som.
Havia alguém protestava por causa disso, um ruído constante que não ia deixar dormir.
Pelo contrário, dificilmente conseguia imaginar um melhor soporífero que este. Ia adormecer embalado, sem ter que as contar a saltar pelo cercado. 

Num acampamento  tudo serve para me acordar. A luz, vozes sussurrantes e pequenos ruídos matinais.
Desta vez foram as cabras. O meu soporífero e o meu despertador simultaneamente. 
A presença do sol ainda não se fazia sentir. Amanhã estava azulada e as estrelas ainda vadiavam pelo céu.

Um puto ordenhava as cabra. Ofereceu-me uma cabaça com algum leite ainda quente.
Mostrei interesse pelo leite, mas disse-lhe que não com a cabeça, esfregando a barriga com a mão, imitando o som universal de uma diarreia monumental que o puto com gargalhadas reconheceu de imediato e imitou-me.

Tirei o meu colchão o saco-cama para fora da tenda e juntei-me a dois colegas de grupo que bem no centro da aldeia, dormiam ao relento.
Deitei-me de barriga para o ar a olhar as estrelas. Senti aquela tontura, aquela vertigem típica que tenho quando deitado no chão, olho para as estrelas.

Inspirei aquela calma. O céu onde já só brilhavam algumas estrelas e a madrugada azulada. Profundamente expirei para o ar todas as minhas inquietações.




Fomos convidados a participar na cerimónia do café na cabana maior. A porta era propositadamente baixíssima e estreita.
Tive que tirar muito bem as medidas à porta para entrar. Primeiro uma perna, depois por-me de lado, passar um ombro, agachar-me a sério, passar a cabeça, passar outro ombro e finalmente a outra perna entrou na cabana.


O chefe da aldeia foi o último a chegar. O seu lugar estava bem definido e melhor respeitado.
No interior estava escuro. Apenas as brasas onde o café aquecia trazia luz, iluminando especialmente o rosto da jovem que servia o café na cabaça.

A cabaça percorreu todas as pessoas que dentro da cabana. Quando o café acabava enchia-se de novo e a roda retomava.
Peguei nela e olhei em volta quando chegou. Tinha uma espessa camada de borras consolidada toda a volta. Para além dos olhos cravados em mim, vi sorrisos mostrando fileiras de dentes podres e sabe lá que mais.
Beber café daquela cabaça foi uma acto de coragem. Um misto de beber com comer.




Mais tarde quando os Hamer souberam que no grupo havia dois médicos, trouxeram um elemento da tribo com um lenço na boca. Tinha dificuldade em falar. Os seus lábios estavam inchados, em ferida e com pus. 
Diagnosticaram-lhe uma forte possibilidade de ser herpes labial. Herpes labial é contagioso por contacto.

A cabaça e os dentes podres vieram-me logo à cabeça. Tentei recordar-me se ele estaria ou não no interior da cabana por altura do café. Não me recordava de o ver, mas isso não fez diminuir a minha preocupação. Além que pelo chão junto ás cabanas viam-se algumas cabaças. E alguns cães também andavam por ali...
Preocupações de um ocidental habituado a ambientes esterilizados.

Fui conhecendo alguns dos elementos mais importantes da aldeia.
A mulher do chefe da aldeia estava sentada no chão entre duas cabanas. Tão franzina como ele e com o rosto profundamente encovado. Era cega e tinha um cajado igual ao do chefe. 
Tentei falar com ela através de Chuchu, mas afastou-nos veemente com a mão.

O herói da aldeia pavoneava-se orgulhosamente à nossa volta. Era fácil de o distinguir. Tinha uma pena preta na cabeça.
A pena simbolizava que ele tinha feito algo de grandioso. Mas o seu acto heróico era algo de nebuloso. Uma versão dizia que ele tinha morto um animal selvagem com as próprias mãos, outros diziam que tinha sido com uma arma e ainda diziam que tinha morto um inimigo da tribo.

Acedeu a umas fotografias. Para lhe tirar fotografia fez um ar de "mauzão" orgulhoso.
Pediu dinheiro. Disse-lhe que não e abarquei com a mão todo o espaço envolvente.
O herói estava a quebrar as regras das fotografias que de inicio tinham ficado estabelecidas: podíamos fotografar a tribo desde que a sua cultura e privacidade não fosse invadida.
Ofereci-lhe um sabonete, a moeda usada para pagamentos. Arrancou-mo da mão e fez de novo aquele ar ameaçador apontando para a pena. O seu orgulho, o seu status.

A jovem casadoira.
Quando ainda não são casadas e mães, as jovens andam todas enfeitadas com contas e búzios. As cores são variadas. Vermelhos, amarelos, pretos, azuis, verdes. São símbolos de beleza e juventude.
Quando casadas, a quantidade de adornos diminuem e perdem a exuberância das cores e são-lhe colocados colares metálicos.
As mulheres são casadas têm dois colares, um dos quais pontiagudos.

Os homens Hamer, podem ter várias mulheres.
Conforme o número de colares, as mulheres podem ser a segunda ou a terceira mulher.
O status destas mulheres dentro da família e da sociedade Hamer diminui à medida que o número de colares aumenta.
Chegam a raiar a subserviência.










Aswu fez-me gestos com as mãos para ir atrás dele. Queria mostrar a escola e ao mesmo tempo, sala de aulas. 
Singela. Abecedário literalmente escrito na parede. Nas paredes estavam pendurados pequenos dicionários e ilustrações desenhadas à mão com as suas equivalências em inglês.
As escrivaninhas eram estreitas e simples com bancos corridos. 

Dois pequenos armários tinham manuais escolares e um quadro à boa velha maneira de xisto com paus de giz branco e um apagador.
Havia orgulho bem patente nos braços de Aswu que abarcavam e faziam uma panorâmica da sala.

Tenho um especial carinho e ternura por estas salas. É um esforço e um querer muito genuíno e sincero de apostar na educação e na evolução de um país, independentemente das condições que estas salas têm.




Enquanto ia conhecendo os segredos daquela aldeia, um pequenito nos braços de uma mãe e protegido pela sua manta, estendia a mão para a minha maçã verde que estava a comer. 
Do saco tirei duas. Uma verde e outra vermelha. Dei-lhas.

O puto de olhos muito abertos agarrou nas duas. Ficou a olhar a mãe quando esta as tirou das suas mãos.
Dentada para uma, dentada para o outro. Vermelha para os dois, verde para os dois.
Sentei-me na frente deles a acabar de comer a minha com eles. Estava divertido com a situação.
O que nos separava geograficamente, unia-nos o mastigar de uma maçã.






Comentários

  1. Hoje andei a passear por aqui. Gostei.
    Amanhã, se tiver tempo, repito.

    Abraço :)

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    1. Oi Adorinha
      Não pares de esvoaçar por aqui. Volta sempre :)

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