Egipto - night train (Cairo - Assuão)

Cairo, está longe de ser uma cidade pacífica, ou ser uma que deixe saudades.
Está mal cuidada. É agressiva, ruidosa, poluída e muito suja. Os seus habitantes estão longe de primar pela simpatia ou pela sua prestabilidade.
Ao deixar a desagradável capital egípcia, sentia em mim um aliviar da tensão que ela me tinha impregnado desde o primeiro dia de chegada.

Quase mil quilómetros a sul e quase treze horas num comboio nocturno, me separavam de uma cidade de cerca de doze milhões de habitantes para outra com aproximadamente trezentas mil pessoas.
A minha próxima etapa seria Assuão. A bonita e pacata cidade das felucas.


A mochila estava no chão e eu encostado a ela. Cheguei cedo à estação Giza para apanhar o comboio overnight para Assuão, A hora de partida prevista para as oito e meia da noite.
Vale a pena chegar a cedo. Gosto dos ambientes das estações de comboios, das suas rotinas, do ir e vir dos táxis e do chegar e partir das pessoas, das suas despedidas e do reencontro. 
Chegar cedo também permite ajustar a tempo, algo que corra mal ou um imprevisto que surja.
Tinha-me afastado, fugido é a palavra certa, para uma zona distante da estação onde reinava uma calma relativa e a iluminação escasseava.

No centro da estação, nas bilheteiras, parecia a hora de ponta no metro de Tóquio.
Uma densa parede de pessoas cobria uma grande parte da plataforma. Para a passar ou se sai da estação e é difícil voltar a entrar pelas portas principais, ou saltar da plataforma para a linha.
Numa cidade que alberga doze milhões de pessoas, e que como metrópole atinge os vinte milhões, é impossível não haver multidões onde quer que seja.
Chegar a um quiosque para comprar um pacote de bolachas ou uma garrafa de água era tarefa árdua e dificilmente compensadora.

O comboio fez-se anunciar. As suas cores estavam completamente desbotadas e as janelas pareciam incapazes de devolver um reflexo de sujas que estavam. Dirigi-me para a porta e descobri o meu compartimento.
Um casal escocês de meia idade entrou comigo. Paul, um jovem de Hong Kong, e dois egípcios que iam igualmente para Assuão já lá estavam.
Os bancos eram os tradicionais “hard seats”. Rígidos, corridos, virados uns para os outros e familiarmente forrados a napa verde, rasgados aqui e ali. Sabia que ia ser uma má e longa noite. Dormir sentado não é para mim.
Seis pessoas mais respectivas mochilas, anularam por completo a vaga esperança de conseguir deitar sobre os bancos corridos.

Os escoceses rapidamente tiraram os sacos-cama das mochilas, puseram estas à sua frente, pousaram os pés nelas, enrolaram-se nos sacos-cama e o mundo acabou para eles. Olhei-os com inveja, tal é impensável para mim. Dormir só deitado.
Paul não tinha saco-cama mas tinha feito o mesmo, e estava a ler, os egípcios tagarelavam entre si.

As janelas no corredor estavam imundas. Um sarro amarelado profundamente embrenhado nos vidros, por dentro e fora, desencorajava-me de me encostar a elas ou de as tentar limpar. A noite negra, ausente da Lua, também impedia de ver o quer que fosse.

Envolvi os pensamentos no ritmado clac clac, clac clac metálico das juntas de dilatação sempre que o verdugo das rodar as pisava. Um queixume regular, persistente, dos quilómetros a serem consumidos.
Quando o corredor mergulhou no silêncio, saboreei-o profundamente e ofereci-me a ele.
Andar de comboio à noite torna-me extremamente introspectivo. Os pensamentos soltam-se, mas não partem desenfreadamente à debandada, nem ganham dimensões excessivas.
Entrei, no compartimento. Passei cautelosamente por entre os vários pares de pernas estendidas que preenchiam quase totalmente o centro do compartimento e resignadamente estendi também as minhas.

De manhã, zonzo e com o pescoço rígido e dorido da noite mal dormida, o que via através das janelas não era bonito.
O nascer do sol estava empobrecido pela sujidade do vidro. Os canais de irrigação que se viam estavam secos, os que não estavam, tinham uma absurda e triste nata de detritos plásticos que impedia de ver as águas, apenas adivinhar a sua ondulação. 
Corriam arbustos amarelados, casas semi-construídas ou semi-destruídas, é difícil perceber qual o seu estado, carroças carregadíssimas com burros esqueléticos e trôpegos. Poucos carros nas estradas mal cuidadas e menos gente ainda nos campos.
A agitação do ar à passagem do comboio, fez rodopiar um saco de plástico laranja no verde de um campo até eu o deixar de ver.


A desoladora paisagem que assistia, pelas não menos desoladoras janelas, quatro mil e quinhentos anos antes não poderiam ser mais opostas.
Ar limpo e fresco, o verde era exuberante e não desmaiado, as águas do rio Nilo, muito distantes de virem a ser debilitadas por várias barragens colocadas no seu caminho, traziam consigo a fertilidade toda a área que via à minha frente. As colheitas eram fartas e a a sociedade bem organizada.
O rio dava água, comer e meios de transporte. Os animais abundavam, as felucas navegavam nele e as trocas comerciais eram feitas com o beneplácito do rio.
Nesta altura, os homens e o Nilo estavam em harmonia um com o outro.


À saída da estação de comboios, tinha um largo ajardinado com uma fonte seca no meio. À frente do largo corria a marginal com algumas palmeiras plantadas, um murete e depois as margens do Nilo.
Uma elegantíssima vela triangular de uma feluca navegava em silêncio nele.


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