Etiópia - Arba Minch a Adis Abeba



Nem sempre as localidades nos oferecem a melhor visão para a cultura do país para onde viajamos.
As estradas também. As ligações entre cidades, ou aldeias. Principalmente se falarmos de países africanos, particularmente se falamos de Etiópia.
A ligação entre o sul da Etiópia, Arba Minch e Adis Abeba, no centro do país são cerca de quinhentos quilómetros e quase dez horas de viagem.


De carrinha, desfila a Etiópia. Cruzamos campos áridos, manadas de gado bovino, colunas de burros e trilhos de terra. Chapinha-se e soluça-se em poças de lama de argila vermelha.

Motoretas, pickups, táxis e tuktuks azuis de capota branca e alguns carros e várias carrinhas.

Cruzamos cidades bem identificadas e frequentemente passa-se por aldeias de correr, aldeias que apenas existem ao longo da estrada e cujo comprimento pode ser medidos por poucas centenas de metros.
Há crianças a dizer adeus, crianças a pedir garrafas de plástico, até crianças a atirarem pedras ao carro.

As estufas de flores que se vêem são holandesas e as auto-estradas chinesas. 

As paisagens são sempre abertas. Longas rectas apenas interrompidas no horizonte, ou pelo céu, ou pelas montanhas.
Toda a envolvência desta ligação, como em tantas outras, por este imenso continente negro fora, é exuberantemente colorida.

As diferenças entre o sul e norte, com Adis Abeba, aproximadamente no centro, são bem notórias.
O choque e a transição cultural é mais evidente na ligação Sul-Norte.
Esta é uma ligação quase épica.




Nas zonas rurais do sul, muita da cultura etíope espraia-se pelas estradas.
Começar a percorrer o asfalto bem cedo e assistir ao nascer das rotinas é sempre marcante.
Com o sol ainda a nascer já as ruas são calcorreadas. Principalmente pelo gado.
À medida que manhã se alonga nas horas, as colunas de gado alongam-se e adensam-se também. Os pastores vão trazendo para as estradas o gado comunitário. Vacas, cabras, burros.

Por entre os cornos bem altos do gado bovino e emparedados por burros, os pastores trazem à boa maneira das nossas beiras, o cajado pendurado no ombro e uma garrafa de água no bolso das calças ou dos calções esfiapados.
Os carros avançam lentamente. Uma ou outra vez, um dos cornos roça a carrinha e até é aconselhável ter as janelas fechadas.
Aqui, no sul, é frequente encontrarmos os carros e jipes riscados quase sempre à mesma altura, a das janelas.




Nas margens das estradas, o número de etíopes que caminham a pé, aumenta.
Os transportes existem mas são poucos e não são acessíveis a muitos.
As distâncias que se percorrem entre cidades ou entre vilas, faz duvidar, que tal possa acontecer. Mas as passadas determinadas, os rostos que mostram um objectivo traçado, e o que vai nas mãos ou às suas costas, mostra exactamente que vão para um lugar que sabem onde é, e que não é visível para quem displicentemente utiliza, rola, por uma única vez o alcatrão.

O sul é tribal.
Menos cosmopolita, baixa densidade populacional, muito mais colorido e mais pobre também. As pessoas são descontraídas, mais acessíveis e dispostos a darem-se conhecer.
Anda-se muito mais a pé e são bastante mais os que andam descalços. Andar, ou mais que isso, vê-los a correr desta maneira, principalmente, faz enrolar os dedos dos pés.




- Botle! Botle! Botle!

Por uma recompensa de uma garrafa de plástico vazia, ou melhor ainda, uma cheia, os putos dançam, caminham e correm, ao lado da carrinha como se calçassem a melhor das botas de trekking.
Vão por cima de gravilha, pedras e paus. Não abrandam, não olham para o chão para ver o que está à frente deles.

De repente, uma pancada seca na carrinha. E depois outra igual. O condutor para a carrinha e põe-se a gritar e a gesticular para um milheiral.
Não percebi qual a razão para aquele estrilho todo.
- Human scare crows.
Espantalhos humanos?? Não tinha certeza do que tinha ouvido.
Chuchu explica.
- A tribo Konso tem o hábito de colocar homens, mulheres ou crianças nos campos cultivados a afugentar os pássaros com fundas.
Fiz um olhar angustiado, O guia percebeu o seu significado.
- Eles, não pretendem acertar nos pássaros, seria muito difícil consegui-lo, mas apenas que a pedra caia na sua direcção e os faça fugir do milheiral.
Apontando com o dedo para as árvores, continua a explicação.
- Estás a ver aquelas árvores? Eles têm uma plataforma entre elas, levam água e comer lá para cima, e passam oito a dez horas a afugentar os pássaros com fundas.

Do milheiral saem duas pessoas: uma rapariga nova de sorriso aberto, a que provavelmente atirou as duas pedras, e um homem de rosto angular e olhar penetrante, com a funda na mão. O condutor apoiado na carrinha branca, olhava para a jovem de sobrolho bem carregado.







Chewe mostra-nos a sua funda.

Feita de corda, tipo sisal, entrançada. A meio dela tem uma “cama” onde se coloca a pedra. Uma das extremidades da corda tem um anel que fica preso ao dedo.
Gira-se a funda a cima da cabeça e solta-se a extremidade que não está segura ao dedo. Um lançamento bem feito e quase que se deixa de ver a pedra na distância, Ele estende-me a funda já com um calhau colocado. Arredondado e pesado. Não tenho como escapar ao convite envenenado. Giro a funda, solto-a e a pedra cai literalmente dois metros à minha frente.




Satisfaz-me que os meus colegas não façam melhor. Nada como um conjunto de brancos desajeitados com uma funda na mão para provocar gargalhadas que unem dois continentes tão diferentes entre si.
Rimo-nos uns dos outros.

Dois putos atrás de um burro aproximam-se e juntam-se a nós. Outros dois também saídos do milheiral já estavam connosco e mostravam como se dança a pedir a tal garrafa de água.
Por causa de duas pedradas numa carrinha cheia de ocidentais e de uma funda de sisal, tínhamos em poucos minutos, e vindos quase do nada, uma pequena multidão connosco, a mostrar a sua cultura.


Comentários

  1. É um gosto passear por aqui. Tento visualizar as situações que vivencias e fico-te com uma enorme "inveja" :)))))

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