Índia - por onde andas espiritualidade?

Quando na noite chuvosa da minha chegada à Índia, Kumar parou às portas do Yes Please, em Nova Deli, sem provavelmente ter essa noção, por fazer parte dele, parou às portas do país mais contraditório, mais estranho e mais confuso onde já estive até ao momento. 

Na manhã do dia seguinte, o quotidiano da vida de Deli, da Índia, empurrou-me para trás da mesma maneira faria um forte encontrão no meu peito.
Este empurrão iria estar presente em todos os dias da minha viagem pela Índia, qualquer que seja cidade que se considere. Será apenas a escala desse empurrão que fará a diferença.
No fim da viagem, no interior do elegante A380 que me levaria para a minha escala em Frankfurt uma pergunta que estivera latente durante dias, concretizou-se formalmente:
- Como é que um país tão espiritual, de muitas religiões, mas diria não religioso, que deu origem ao ioga, ao karma, ao conceito do tantra e tem o maior festival religioso do mundo, o Kumba Melah, que reune cerca de 80 milhões de hindus de doze em doze anos, consegue ser quotidianamente tão desligado e indiferente a essa mesma espiritualidade??

Não encontrei respostas para a pergunta e não estava à espera de a encontrar. É a velha questão de Moravia, a Índia é a Índia.


A Índia é um assalto aos sentidos. Nada neste país é elegante ou discreto, entra ou chega devagar, vem com um pedido de por favor ou com suavidade. É tudo de rajada, é tudo de uma só vez. Brutal.
Os aromas são intensos, o ruído das buzinas é agressivo, as cores das cidades, dos habitantes, são vibrantes, a curiosidade nativa aproxima-se da invasão, a insistência é absurda, a privacidade é nula.

As ruas interiores das cidades, onde os carros não circulam, são tortuosas, estreitas, sarnosas e maltratadas como os cães que vagabundeiam por elas. Estão cheias de lixo e de lixeiras.
Estão quase sempre imersas nas sombras. Por vezes um flash de luz rompe o novelo intrincado e caótico dos cabos eléctricos, ziguezagueia por entre anúncios verticais de hotéis, cafés, tascos, lojecas de bugiganga, esgueira-se por toldos de serapilheira esburacada e chega ao chão, criando zonas de fortes contrastes entre luz e sombra.
Um fluxo sanguíneo de cães, vacas, macacos, porcos, cabras, tuk tuks, riquexós e pessoas, muitas pessoas - na Índia há sempre muitas pessoas - circulam por ela em movimento perpétuo.
Atrai-me a decadência, o seu claustrofobismo, a vida intensa, as bancas e lojas que as atravancam. Será sempre nestas ruas que mais fortemente sentiria a Índia.




As artérias principais que abraçam e cruzam as cidades, não são menos inclementes.
Também há aqui lixo e lixeiras. Seres humanos e animais vêm buscar a estas pilhas obscenamente fedorentas o seu sustento diário.
Eles trazem-me ao vivo, as imagens tipicamente chocantes da Índia: sem abrigos a defecar e a urinar nos passeios, caminharem descalços por lençóis de água fétida de esgotos abertos ao céu, tendas feitas de plásticos precariamente atadas e unidas umas às outras por frágeis arames que por sua vez estão presos a inúteis pneus de antigos camiões, a um tijolo de um murete qualquer ou pregados entre duas pedras do passeio, onde vivem famílias inteiras.

A estes, chamam-lhes os intocáveis, os párias, impuros. Pertencem à casta Dalit, a mais baixa das castas.
Segundo a crença hindu, a casta mais alta (Bramane) tem origem da cabeça de Brama, as seguintes vêm dos seus braços (Xátrias), pernas (Vaixás) e dos pés (Sudras).
Os Dalit provêm do pó que está debaixo do Deus Brama. Não têm sequer origem no corpo do Deus criador, mas sim do chão que este pisa.








A Índia tem uma sociedade organizada e estruturada no sistema de castas. Esta milenar - as suas origens remontam a alguns séculos antes de Cristo - estratificação social foi oficialmente banida por lei na constituição indiana de 1950, mas continua tão presente e a reger a sociedade indiana como nos séculos anteriores à pretensa abolição.
Nas castas (e nas inúmeras sub-castas) tudo acontece na horizontalidade. As superiores não se relacionam com as mais baixas, as mais baixas não têm a pretensão de ascenderem às superiores, incluindo todos os descendentes das famílias de uma determinada casta, ou de serem reconhecidas por estas.
As oportunidades de emprego são diferentes de umas para as outras e os trabalhos desempenhados por umas, não são desempenhadas por outras.
Uma implacável e estigmática barreira herdada de auto-exclusão marcada a ferro e fogo e não atrevida a ser questionada.


Nem só os intocáveis são abandonados à sua sorte. Se a Índia os discrimina ostensivamente, atirando-os literalmente para o chão da rua, a vida não humana, não fica atrás.
Cães, vacas, porcos e macacos andam pelas estradas, chafurdam nos lixos, sentam-se em frente a um restaurante, ou a uma banca de fritos à espera que algo lhes caia nos estômagos.
Os cães são espancados com sorrisos e divertimento. Batem-lhes com paus, pontapeiam-nos quando dormem nas cinzas arrefecidas dos restos de uma fogueira, numa cama de areia de uma construção abandonada, num degrau aquecido ao sol.
A pele não se distingue do osso e em vez de pelo há sarna. Andam, cambaleiam de olhos cansados, rabo entre as pernas, com patas partidas, feridas e chagas no corpo. Desesperam por um pacote de bolachas que se vai comprando para os alimentar.

As vacas são às dezenas nas estradas, nos passeios, nas ruas. Caminham lentamente, estão simplesmente paradas ou até deitadas onde calha. O trânsito das cidades desvia-se delas, nas ruas estreitas dão-lhes palmadas para as desimpedirem, para as porem em movimento.
Oscilam entre bem alimentadas e atrozmente magras e doentias. Não lhes fazem mal, mas também não cuidam delas.






Os macacos andam por todo lado nas cidades, andam livres e pela sua natureza impõem respeito. Mas frequentemente encontramo-los assustados, presos a trelas, onde são puxados, arrastados com violência pelas estradas fora ou nas ghats para que os seus donos ganhem algumas rupias sob o pretexto de os alimentar.

Num pretenso e falacioso acto de coragem, os "encantadores" de serpentes, cobras capelo, belas e elegantes najas de dorso negro ou creme com os capelos aberto e reluzentes, mutilam-nas, retirando as presas e as bolsas de veneno para as poderem fazer oscilar nos mesmos movimentos ondulantes de uma flauta roufenha e triste na segurança de um acto cruel.





Penso, pensamos, na Índia como um país espiritual.
Se pensarmos no ioga, no Karma, no Om, a reencarnação Samsara, a separação do corpo, do invólucro físico do espiritual, da energia na morte, o objectivo primordial de atingir a Moksha, entramos na mais pura e multi milenar espiritualidade do hinduísmo.
No entanto a realidade deste país não é tão harmoniosa como estes conceitos.
Não há serenidade, não há harmonia, não elegância. Não há paz, não há fluidez. Tudo tem que ser conquistado. A luta, a competição, é um modo de vida, uma forma de vida. Tudo é frenético. Tudo é convulsão. Não há tréguas, não há descanso e a vida em todas as suas formas não é respeitada ou protegida.
É uma contradição enorme.


Reflicto nisto. Pensando bem, não há contradição. A Índia não é espiritual.
É em mim, que viajo pela Índia, por quem viaja na Índia que reside o equívoco e a contradição.
Gostamos de acreditar que a Índia é um país espiritual,
Mas não. A Índia, o povo indiano, não é espiritual, não pode, e diria que não está interessado em sê-lo. Na maior das benevolências diria que pelo menos enferma de uma espiritualidade inconsequente.
Demonstra-o a cada passo que dou, a cada gesto que observo, a cada cheiro fétido que inalo, em cada vida maltratada que vejo.


Comentários

  1. Li, vi as imagens e não te sei definir com exactidão os sentimentos que me provocaram. Tristeza? Choque? Não propriamente porque já imaginava que fosse assim. Mas ao ver as fotos e ao ler o que vivenciaste tudo se torna mais concreto e real. Como se, sem ver ou ler, cá dentro de mim permanecesse a ilusão de que tudo não fosse assim.
    Dificilmente irei à Índia. Seria para mim muito difícil lidar com todas essas situações descritas.
    Gosto de um choque cultural, algo que abale os alicerces desta cultura em que estou inserida, que me faça questionar a mim própria, mas algo desta dimensão é demasiado brutal.

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    1. Choque cultural é elevadíssimo. É um país muito duro e exigente para quem visita e para quem vive lá.
      Pessoalmente deveria ser obrigatório para toda as pessoas uma visita à Índia.
      Por muitas experiências que se tenha, a Índia será sempre uma aprendizagem marcante e extremamente útil. As lições que tem para nos dar são muitas.
      Além que é sempre bom sair do nosso quintal e conhecer outros, mesmo que isso nos ponha Ko. :)

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  2. Tambem acho que o povo indiano nao e espiritualizado, ou, ao menos, essa espiritualizacao nao se mostra a estranhos. Mas me senti tao acolhida pelas pessoas, em todos os lugares, sou tao grata pelo que me proporcionaram nessa viagem, que nao me sinto no direito de julgar a realidade deles sem antes andar com os seus (deles) sapatos.

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  3. Talvez tudo isso seja o mais espiritual na Índia. Você pensou tanto e esqueceu do principal do verdadeiro praticante, o não pensar. O terceiro olho pode abrir somente quando transcendemos o pensar. Seria o não pensar que te permitiria ir além de todos o pensamentos e julgamentos e unicamente ser, viver. Porquê é isso que os indianos são. Eles são. Como você falou sobre Moraiva. Você quis entender com a mente o que só pode ser entendido com a transcendência da mente. Quiçá, a nossa busca por ser flor de Lotus, que em meio ao lodo mantém sua beleza. Que em meio a tanta contradição, porque em verdade a espiritualidade não tem que ser lógica, reside aí a alquimia, graça, verdade, aceitação daquilo que é. Ser. Aceitação de ser intocável, aceitação de ser apenas um guarda na rua. Aceitação e acolhimento de tudo. Digo que a Índia e uma grande mãe que a tudo acolhe, inclusive os cocôs de vacas nas ruas. Há tanto que aprender. E eu tenho aprendido tanto e sou infinitamente tão grata. <3 /\

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    1. Como qualquer pessoa que viaje por países culturalmente muito diferentes do nosso, tento despir as minhas vestimentas ocidentais e não analisar o que vivencio dessa forma. Considero que sou razoavelmente bem sucedido nesta tentativa.

      Quando se fala em termos espirituais, despir a visão ocidental, abrir o terceiro olho é para mim bastante mais difícil.
      Particularmente quando o sofrimento do ser humano e dos animais, especialmente este último, sou vegetariano por eles, estão em jogo e no caso da Índia, estão absurdamente à nossa frente.

      Não se pode ser espiritualmente evoluído, quando se provoca, quando se é indiferente, alheio ao sofrimento de um ser vivo. Nestas condições, a terceira visão, não existe de todo.

      Mas paradoxalmente, e não fosse a Índia, por definição um, a forma como lidam com a morte e o mundo espiritual, é admirável.
      Assistir, perceber e admirar os seus rituais de morte ( nas ghats de Varanasi) é um privilégio imenso. Mas de novo a forma, como ela, a morte, é gerida e negociada, também é surpreendente, e mais uma vez,espiritualmente incoerente.

      Concordo plenamente contigo "a Índia é uma grande mãe", tudo permite, tudo acolhe.

      Namasté :)

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